sexta-feira, agosto 21, 2009

Interessante posicionamento sobre a universalidade dos direitos humanos publicada no Le Monde Diplomatique, de autoria de Francois Jullien

"Os direitos do homem são mesmo universais?
Levado ao resto do mundo pelas asas do imperialismo, este conceito ocidental não foi aceito por todos os povos. Seu efeito isolador é incompreendido nas culturas que privilegiam a integração com o mundo e buscam a não alienação do homem, justamente um dos objetivos inatingidos dos tais direitos impostos
Autor: François Jullien

Os direitos do homem são um dever universal. Ao menos é isso que o Ocidente tenta impor para todos os povos do mundo, independente de sua cultura. Exige que eles subscrevam seus preceitos, sem exceção ou brechas, e esquece que esse mesmo padrão foi forçado goela abaixo dos próprios europeus.

A fabricação do “universal” foi excêntrica, para não dizer caótica. Nasceu a partir de projetos múltiplos, e até mesmo inconciliáveis, que culminaram na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Objeto de intermináveis negociações e compromissos, o texto final é uma associação de fragmentos colhidos de diversos lados. Um termo aqui, uma frase acolá, artigos corrigidos, desmembrados e reescritos inúmeras vezes [1]. Pronta, a Declaração foi reconhecida e aprovada por seus próprios autores como uma obra “não terminada”. “Certamente o pior projeto é o que foi adotado” [2], declarou um deles.

Com receio de aumentar as desavenças, todos os pontos de disputa foram ignorados. Redigido às pressas, o texto é revestido de uma abstração que o torna sagrado. Ele ostenta ainda uma aura mítica, ao reivindicar sua concepção “em presença e sob os auspícios do Ser supremo”, apesar de ter sido retirado inteiramente do cérebro dos constituintes. Arroga uma universalidade inicial, ao mesmo tempo em que mistura má-fé e entusiasmo. Se desconsiderarmos seu árduo processo de produção, impressiona pelo êxito histórico: foi legitimamente alçado ao estatuto de ideal e necessário, a ponto de influenciar as constituições francesas de 1793, 1795, 1848 e 1946 e a Declaração Universal adotada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948.

Mas o fato de ter sido constantemente reescrito já mostra que sua suposta universalidade não está dada. Além disso, ao se imporem somente na época moderna, os direitos do homem tornaram-se produtos de uma dupla abstração ocidental: dos “direitos” e do “homem”. Dos “direitos” porque essa noção isola o sujeito, privilegiando o ângulo defensivo da reivindicação, que visa à emancipação e à não-alienação, consagradas como fonte da liberdade. Do “homem” porque o isola de todo contexto vital, do animal ao cósmico, e coloca as dimensões social e política como dependentes de uma construção posterior que garanta sua existência.

É justamente nessa abstração que está a contradição da universalização dos direitos do homem: o isolamento, preço pago para erigir o “universal”, desfez a incorporação do humano em seu mundo e o distanciou da tão almejada não-alienação. Há uma clara oposição entre integração – seja pelo meio familiar, corporativo, ético ou cósmico – e emancipação. A família, por exemplo, que é o nível primário de inclusão, responsável pela mediação inicial entre indivíduo e sociedade, está ausente das declarações de 1789 e 1793. Só aparece em 1795 e de um modo surpreendente, lembrando as cinco relações confucianas: “ninguém é bom cidadão se não é bom filho, bom pai, bom irmão, bom amigo, bom esposo”. Na Declaração Universal de 1948, a referência a “todos os membros da família humana” continua tendo um estatuto vagamente metafórico e alusivo, mais retórico que explicativo. Até hoje, integração e emancipação foram inconciliáveis. Resta ao mundo decidir se isso continuará assim.

Para compreender melhor, tentarei explicar por que o conceito de direitos do homem não encontra eco no pensamento oriental clássico. Na Índia, por exemplo, não há isolamento do “homem” em relação ao mundo, pois a aderência é tão grande que não se concebe uma ordem natural da qual o ser humano não faça parte. A integração é estabelecida até a partir dos animais, que para os indianos são dotados do poder de compreensão e de conhecimento e podem já ter sido homens antes de renascerem como bichos.

A filosofia européia é naturalmente abalada por isso. Na Índia, o homem é tão pouco excepcional que sua vida e morte são vazias de qualquer significado, destinadas a se repetirem indefinidamente. Assim, não encontramos lá nenhum princípio de autonomia individual nem de auto-constituição política a partir das quais os direitos do homem devam ser declarados. Enquanto para o pensamento europeu a liberdade é a última palavra, para o Extremo-Oriente é a harmonia. E sob esse aspecto, a Índia se comunica efetivamente com a China através do budismo. Lá, é o Ocidente que produz uma escandalosa exceção ao introduzir a ruptura que isola o homem.

Portanto, a despeito de sua pretensão universal, os direitos do homem não estão por toda a parte. Quando a perspectiva dominante é outra, os significados mudam. Sob a hegemonia da transcendência, que culmina na constituição de um outro mundo, os direitos são absorvidos em uma ordem cósmica ou teológica. Este é o caso do Islã. A Revelação e o Corão fixam uma lei que, por sua criação divina, atinge “o ponto final na regulamentação das relações humanas” [3]. O medo do Juízo Final, elemento primeiro da fé islâmica, reduz os direitos humanos à insignificância.

Por outro lado, quando há uma cultura em que a imanência prevalece, os direitos não são capazes de se destacar do curso espontâneo das coisas e não emergem das relações de força. Este é exemplo da China. A expressão “direitos do homem” é traduzida para o chinês como Ren-quan. Ren é homem. Quan quer dizer “poder”, especialmente político (quan-li), ou “circunstância”, “expediente” (quan-bian, quan-mu), em contraposição à rigidez das regras (jing). Dessa forma, quan significa um não-bloqueio, uma evolução de acordo com a lógica do processo em curso. O fato de essas duas palavras se juntarem num mesmo termo para traduzir “direitos do homem” revela que seu sentido foi adaptado à visão de mundo chinesa, ao invés de ter sido utilizado com os parâmetros que o Ocidente pretendia impor.

Claro que hoje esse “enxerto” estrangeiro está bem estabelecido na China moderna. Afinal, quando reivindicam os direitos do homem, os jovens chineses da Praça da Paz Celestial sabem que tipo de mensagem estão transmitindo para o Ocidente. Mas por que eles foram praticamente forçados a aprender esse significado e os ocidentais, por outro lado, não compreendem a visão dos orientais? Será que a reivindicação de uma universalidade dos direitos do homem vem do fato que o modo de vida do Ocidente, oriundo da ciência e do capitalismo, acabou se impondo no resto do mundo, e que agora é necessário – ou fatal – adotar a ideologia das relações humanas que vêm junto com essas transformações? E essa sua legitimidade, é decorrência do pensamento europeu ser uma expressão efetiva do progresso histórico e os direitos humanos, como seu produto, constituírem um ganho para a humanidade? O ponto de partida desses questionamentos já é uma acusação, ao menos tácita, de todas as outras culturas. Insustentável, esta visão é criticável por seu etnocentrismo mais obtuso. Afinal, o progresso do pensamento europeu só é julgado positivamente dentro do próprio quadro ideológico que o criou, o ocidental.

Essas objeções são suficientes para mostrar que qualquer justificativa de uma universalidade dos direitos do homem não funciona. Em vez de amoldar o conceito, fazendo acomodações que tornem esses direitos transculturalmente aceitáveis, deveríamos tomar o partido inverso e confiar no seu efeito de conceito, que permite sua operacionalidade e radicalidade. Pois é somente a partir de sua abstração, de sua separação da cultura e do meio de origem que será possível comunicá-los a outros povos. Não é apenas porque o Ocidente promoveu os direitos do homem no momento em que chegava ao auge do poder que eles são hoje debatidos entre as nações, mas sim porque esse estatuto de abstração os torna intelectualmente manejáveis, comodamente identificáveis e transferíveis, fazendo deles um instrumento privilegiado para o diálogo. Não se poderia, por exemplo, ter a “harmonia” como um objeto de comparação, internacionalmente discutível entre as culturas [4].

Por outro lado, sua radicalidade conceitual está em apropriar-se do humano no estágio mais elementar: enquanto nascido. Mas isto teria sido concebido apenas a propósito dos direitos do homem e dentro do quadro europeu? Acredito que não. Pensemos em um famoso ensinamento chinês: imagine alguém que, vendo de repente uma criança a ponto de cair num poço, é imediatamente tomado de pavor e faz um gesto para retê-la. Esse movimento lhe escapa, é completamente reativo. Não poderia deixar de fazê-lo, independente de ter relação privilegiada com os pais da criança, ver nisso um mérito, ou temer ser censurado se não o fizesse. Ora, segundo o filósofo chinês Mêncio, [5] “quem não tem tal consciência da piedade não é homem”. Ou seja, quem nessa situação não estendesse os braços “não é homem”. Em vez de partir de uma definição ideologicamente determinada e, por isso, particular, Mêncio faz surgir aquilo que em si tem vocação de universalidade por ser uma reação não controlada de “humanidade”. Esse braço que se estende é, evidentemente, sem que haja necessidade de interpretação nem mediação cultural, algo “intrínseco” ao sentido comum do humano. Em outras palavras, levar em conta a disparidade das culturas e a maneira como ela nos obriga a desencavar o impensado de nosso pensamento não significa renunciarmos à exigência do comum.

A capacidade universalizante dos “direitos do homem” deve-se, ainda mais, a seu alcance negativo, do ponto de vista daquilo contra o que eles se erguem. Este é infinitamente mais amplo que sua extensão positiva, ou seja, ao que eles aderem. Afinal, sabemos agora que em seu conteúdo positivo, esses direitos são contestáveis – por seu mito do indivíduo, por sua construção da “felicidade” como fim último, por seu pressuposto de ensinar universalmente o significado da vida, exigindo que sua ética seja preferida a qualquer outra. Mas, em contrapartida, eles são um instrumento incomparável para dizer não e protestar, para opor-se ao inaceitável, marcar uma resistência. Os direitos do homem, indefinidamente mutáveis e transculturalmente sem limites, nomeiam precisamente aquilo “em nome de quê”. Ora, essa função negativa, insurrecional, prevalece sobre a dimensão positiva da noção e alcança a utilidade mais geral que a vocação do universal possui: a de reabrir uma brecha na totalidade satisfeita, reacendendo nela a aspiração. Nem todos os que invocam os direitos do homem aderem à ideologia ocidental – às vezes nem mesmo a conhecem –, mas encontram neles o último argumento, o instrumento incansavelmente retomado de mão em mão e disponível para toda causa por vir.

Isso requer “deslocar” um pouco nossos termos usuais: melhor do que reivindicar uma universalidade arrogante dos direitos do homem – que nos condenaria a desconhecer o quanto eles são culturalmente marcados – e melhor do que renunciar, por despeito teórico, à arma insurrecional e de protesto que eles constituem e podem servir em todos os lugares de nosso planeta, mais vale abrir um desvio em nossas palavras e, vendo-os como universalizante, exprimir ao mesmo tempo duas coisas: primeiro, em vez de supor nos direitos do homem uma universalidade que eles teriam desde o início, o universalizante dá a entender que o universal se encontra em curso, em marcha, em processo que não está acabado; segundo, em vez de deixar-se conceber como uma propriedade ou qualidade passivamente possuída, o universalizante dá a entender que é fator, agente e promotor. É, nele mesmo, vetor do universal, e não por referência ou sob a dependência de alguma representação instituída externamente.

O caráter universalizante dos direitos do homem, portanto, não é da ordem do saber (teórico), mas do operatório (ou prático): eles são invocados para agir, desde o princípio, em qualquer situação dada. Por outro lado, sua extensão não é a da verdade, mas do recurso. O que distingue o “universalizante” do “universalizável” é precisamente essa diferença de plano. O universalizável é o que pretende a qualidade de universal, enquanto enunciado de verdade. Assim ele depara inevitavelmente com o espinhoso problema de seu “poder ser”. Devendo justificar em nome de quê é legítima a extensão que ele se arroga, o “universalizável” corre sempre o perigo de ser tachado de uma pretensão abusiva, sob o risco de ser considerado fraudulento ou, pelo menos, litigioso. O “universalizante”, por sua vez, é imune a esse problema de legitimidade: sendo de onde emana o universal, por carência e de forma operatória, ele não se pretende nada, ele faz. Seu valor é medido pela força e a intensidade desse efeito.

Podemos dizer que os direitos do homem são um “universalizante” forte e eficaz. A questão não é mais saber se eles são universalizáveis, isto é, se podem ser estendidos como enunciado de verdade a todas as culturas do mundo – e, nesse caso, a resposta é não. Mas é ter certeza que eles produzem um efeito de universal que serve de arma incondicional, instrumento negativo em nome do qual um combate a priori é justo e uma resistência é legítima. "

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