quinta-feira, outubro 04, 2012

CULPADO POR SUSPEITA



 

                Certa vez, fiz um favor a um parente, representando-o em uma Reclamação Trabalhista na qual sua conta bancária tinha sido bloqueada, a pedido de um reclamante que tinha trabalhado em uma empresa da qual ele tinha sido sócio. O reclamante havia sido contratado anos depois que ele havia saído da sociedade. Fui falar com o juiz, pedindo a exclusão do ex-sócio da execução. O juiz ouviu, olhou para mim e disse: “mas o reclamante não pode ficar no desamparo”. Eu disse: “Excelência, não há diferença quanto à responsabilidade por esse débito entre o meu cliente ou uma pessoa que vai passando agora na calçada”.

                Essa história ilustra bem o quanto é perigoso voluntarismo no agir do Judiciário. O magistrado citado tinha boa intenção, queria proteger um desprotegido, mas cometeria, com sua ação, uma injustiça inquestionável.

                No espetáculo do julgamento do mensalão, já fiquei bastante assustado com o palavreado de alguns ministros, que parecem buscar aceitação de uma grande massa que espera a condenação geral dos réus. Alguns usam termos desnecessários, agressivos, que nada acrescentam à justificação da decisão.

                No entanto, a leitura do Voto do Ministro Relator sobre José Dirceu foi que mais me deixou de orelha em pé.

                No que se refere à reprovação política, posso atribuir, sem provas, responsabilidades a diversas pessoas ligadas ao fato. Direito Penal, no entanto, é diferente. Posso dizer que o Papa é responsável pelos casos de pedofilia na Igreja, mas não posso condenar o Papa por nenhum desses casos concretos de violência sexual contra crianças, pois a responsabilidade penal é individual e a conduta correspondente ao tipo precisa ser provada.

                A meu ver, o voto do Min. Joaquim Barbosa foi assustador. Um conjunto de suposições formando uma rede, que levavam à responsabilidade de José Dirceu. Esse superpoder ao juiz penal, de justificar a responsabilidade por entender não ser “factível” a defesa do réu, é nitidamente perigoso. Acusa o Voto do Relator José Dirceu de ter recebido presidentes de partidos, acusação que seria verdadeira tratando-se de qualquer Chefe da Casa Civil. Literalmente, disse o ministro que considera “impossível acolher a tese de que José Dirceu simplesmente não sabia que Marcos Valério vinha fazendo pagamentos a parlamentares da base aliada”, sem citar qualquer testemunho que aponte para a participação de Dirceu. Fala da viagem a Portugal feita por Marcos Valério como se ele falasse “de fato, em nome de José Dirceu, e não como um pequeno e desconhecido publicitário de Minas Gerais. Era o seu broker”, quando não cita qualquer depoimento nesse sentido.

                Resumindo: para essa tese, bastaria uma prova: o Diário Oficial, nomeando José Dirceu Ministro Chefe da Casa Civil.

                Há, praticamente, uma presunção relativa de culpa, sendo o réu condenado por não ter produzido suficiente prova em contrário, quando o ônus da prova dos fatos que incriminam o réu é da acusação.

                Sei que muita coisa mudou no Direito Penal desde que fui, na UFRN, monitor da matéria, mas espero que não tenha mudado ao ponto de ser esse “Direito Penal alternativo” aceito pela maioria dos penalistas.

                Além de todas essas perplexidades, sinto uma profunda tristeza, por ver alguns amigos da área jurídica, que estudaram Direito, que tiveram oportunidade de conhecer garantias penais, saber dos riscos de sua relativização, agindo como se vibrassem, em uma arena, com um leão estraçalhando um cristão.

                Já vi quem me respondesse dizendo que “não aguenta mais a corrupção” e que “quer a condenação de todos”. Não há qualquer diferença entre esse raciocínio e o raciocínio dos que apoiam, nas periferias das grandes cidades, grupos de extermínio, que matam aqueles que, aos olhos da maioria, são os bandidos do lugar. Eles não aguentam mais tantos crimes. Morrendo alguns, não importando suas responsabilidades individuais, haverá menos crime.

                Nunca nutri qualquer admiração por José Dirceu. Quando fui militante do PT, sempre estive em lado oposto ao dele e sempre reclamei da forma como ele conduzia processos políticos dentro do partido. Não afirmo aqui a sua inocência. Não tenho elementos para isso. Mas não transformo a imagem que tenho dele em justificador de uma condenação por mera suspeita.

                Não, não participarei desse rolo compressor, tenha lá as razões que tenha, e digo não a esse “direito penal alternativo”.

sexta-feira, junho 01, 2012

Sobre pessoas e partidos


A guerra na qual se transformou o processo de escolha do candidato a prefeito do PT no Recife revela a dificuldade em se consolidar partidos em nossa cultura. Em nossa história, os partidos políticos foram sempre pouco orgânicos. Apesar de, em certos momentos, algumas siglas ostentarem alguma identidade ideológica, a regra tem sido a prevalência de interesses pessoais ou de pequenos grupos. Isso não é exclusividade do momento de escolha de candidatos. O eleitor também não se prende a discursos mais estruturastes, escolhendo pontualmente, sem valorar muito a sigla à qual está ligado o candidato. Vota no candidato, não no partido. Casos como o da eleição de Jarbas para a Prefeitura do Recife, em 1985, quando saiu do seu partido só para ser candidato, evidenciam essa cultura.

O PT nasceu com uma certa identidade, apesar de ter em seu interior uma plêiade de posições políticas de esquerda. Era um partido de esquerda não alinhado às experiências de socialismo real. Os partidos comunistas estavam doutrinariamente presos à União Soviética (PCB) ou à Albânia (PCdoB). Para o PT foram, dentre outros, (i) críticos do socialismo real, especialmente os abrigados nas universidades, (ii) sindicalistas neosocialistas, ainda sem uma definição ideológica muito clara, (iii) católicos de esquerda, em torno de teologias fortemente marcadas por críticas sociais, (iv) organizações leninistas, como o PCBR e o PRC, e v) trotoskistas, como a Convergência Socialista, a Democracia Socialista e a LIBELU (O trabalho).

A convivência foi sempre difícil, mas a democracia interna permitia que ela existisse com o mínimo de civilidade. Para viabilizar um diálogo, a divisão foi institucionalizada. O PT inaugurou no país a prática do reconhecimento oficial de tendências, que disputavam a estratégia partidária, os diretórios e vagas nas chapas majoritárias. A maior delas era a chamada "articulação", cujo nome vem do manifesto "articulação dos 113", documento assinado por 113 figuras importantes na construção do PT e que decidiam, ali, disputar organizadamente os seus rumos. Mas outras tinham também certa expressão.

Nós, membros de tendências minoritárias, tínhamos já a sensação de que, por sua estratégia eleitoral mais imediata, a Articulação passava rolo compressor sobre as nossas cabeças.

Iniciei a militância junto ao PT em 1986, em Natal. Filiei-me, apenas, em 1989. No início, ainda não filiado, gravitava em torno do PCBR, apesar de ter contato com poucos membros desse partido. Meu contato era por meio de companheiros do movimento estudantil. Era uma convivência tumultuada, pois eu tinha um pé atrás em relação a um conjunto de coisas que, para mim, eram autoritárias, especialmente nas leituras do leninismo. Eu lia muitos textos da revista Teoria&Política, que era mantida por membros do PRC. Gostava dos textos de Adelmo Genro Filho, de Tarso Genro, de Aldo Fornazieri, dentre outros. Eram textos com certa profundidade, quando comparados com a prática política do campo onde eu estava. Em 1988, entrei na UFRN, o que me proporcionou uma aproximação com o PRC. Na época, nacionalmente havia uma tendência no movimento estudantil, a "Caminhando", que era o biombo do PRC naquele movimento, algo típico das organizações leninistas (para entendê-las, recomendo a leitura do próprio Lênin, no livro "que fazer?", de 1902, ou seja, de quando a revolução russa era uma possibilidade distante e a organização era uma necessidade). A Caminhando era a maior tendência petista no movimento estudantil.

Em Natal, a "Caminhando" tinha, por razões locais, outro nome: "Clarear". Era um grupo bom, formado por militantes preocupados, ao mesmo tempo, com a prática política e com a sua fundamentação teórica. Em 1988, fui eleito Secretário-Geral do Centro Acadêmico de Direito. Em 1989, fui eleito Secretário-Geral do Diretório Central dos Estudantes. A essa altura, eu já fazia parte da Coordenação da Clarear na UFRN, ao lado de Eduardo, o presidente do DCE, e Francisco Ramos, Segundo Vice Presidente. Reuníamos um conjunto de artigos sobre política, de autores de esquerda, e fazíamos o que chamávamos de "Cadernos de Clarear", uma espécie de revista com artigos roubados. Era um roteiro para estudos e debates. Nossas reuniões, para debater tais textos, eram, muitas vezes, em ensolarados domingos, sob as mangueiras da Faculdade de Medicina da UFRN. Todos na praia e nós, a menos de um quilômetro dela, discutindo o futuro do país.

No PT de Natal, o equilíbrio entre tendências era inusitado, quando comparado ao que acontecia no resto do país. Estranhamente, não havia a Articulação organizada. Talvez, por isso, não crescíamos rapidamente nas eleições. Faltava aos idealistas comunistas daquela quadra o pragmatismo que a articulação ia impondo ao PT.

Participei, para minha sorte, do rico debate sobre a dissolução do PRC e a criação de uma tendência mais ampla, chamada de "Nova Esquerda". Eu estava sendo "recrutado" pelo PRC. Recebia textos de um amigo, designado para isso, e ia para a casa dele discutir. Eram textos do Comitê Central, que abria um debate sobre a inadequação daquela forma partidária para a época na qual vivíamos. Eu adorava os textos que criticavam o marxismo-leninismo, o que transformava a reunião de "recrutamento" em um momento de conflito, já que o meu amigo era reticente em relação a essa crítica e tendia a cerrar fileiras com o único membro do comitê central que defendia com todas as garras o marxismo-leninismo, que, se não me engano, respondia pelo pseudônimo de "Zé Luiz". Ao final, daquele grupo saíram duas tendências, a "Nova Esquerda", que depois dividiu-se mais, e a "Tendência Marxista", que abrigou os mais ortodoxos.

Eu tinha fortes preocupações com democracia. Lia Bobbio, Walter Benjamin, Castoriadis, dentre outros, sendo difícil absorver um discurso leninista que me parecia fora do tempo. Vi amigos, que, no início, tendiam a marchar com os ortodoxos, reconhecerem a necessidade de abrir horizontes e decidirem seguir com a Nova Esquerda.

Os encontros municipais do PT eram ótimos. Geraldão, pela Convergência Socialista (hoje, PSTU) , dispensando o microfone e, do alto dos seus mais de cem quilos, literalmente gritando seus discursos, para desespero das crianças, que choravam no auditório da Faculdade de Farmácia. Era tão estranho o PT em Natal que nos juntávamos com todas as outras tendências para derrotar a Convergência, que tinha quase metade do auditório. Eu falava, por necessidade de reforçar as posições da tendência, pois a minha timidez lutava para me impor o silêncio. Fui, por dois anos, após a saída do DCE, assessor do único vereador que o PT tinha em Natal, o hoje Deputado Estadual Fernando Mineiro.

Parecia-me o PT um espaço no qual você aprendia que radicalizar a divergência política não era motivo para o afastamento pessoal. Não havia, na época, projeto pessoal, mas de grupos. Os que militavam em tendências mais à esquerda exalavam, via de regra, idealismo.

Óbvio que não eram todos santos. Eleições nos movimentos sindicais e estudantis prenunciavam muitas das práticas absurdas que alguns membros do partido protagonizaram no poder público. O uso da máquina das entidades era relativamente comum. Mas, ainda assim, pareciam diferentes do que alguns fazem hoje, pois era resultado de uma leitura equivocada da política, no caldo do autoritarismo que há em alguns discursos de esquerda, que entende que os fins justificam os meios. Os fins, no entanto, eram públicos. Dói, muitas vezes, sentir que muitos que acreditavam em um mundo melhor decidiram, diante das evidentes dificuldades de construir esse novo mundo a curto ou médio prazo, fazer as suas vidas pessoais melhorarem, a custo de práticas que antes tanto criticávamos na direita.

De certa forma, há ganhos para a democracia quando tudo isso acontece. O PT construiu um discurso excessivamente moralizador - a estilo da folclórica Heloísa Helena. Parecia que ser corrupto correspondia a ser de direita. O denuncismo foi, por um bom tempo, sua arma mais forte na política. Hoje, sofre com os ataques de outros partidos que adotaram essa sua tática. Hoje fica mais evidente que corrupção não tem ideologia, tem conveniência. Os corruptos estão bem distribuídos entre os partidos. Assim, precisamos ter a conduta ética em relação aos recursos públicos e a postura firme no combate à corrupção como pré-requisitos do debate político, exigível de esquerda e direita. Mas, o que divide tais grandes grupos de posições políticas são outras coisas: papel do Estado na economia, responsabilidade do Estado por problemas sociais, política internacional, dentre outras.

O PT foi, assim, o caminho no qual enxerguei a viabilidade de um partido de esquerda e democrático. Mudou muito, desde que o conheci. Mas, ainda, continua tendo uma marca em meio ao confuso espectro partidário. O pragmatismo arranhou, em muito, sua imagem. Lamentei a saída de figuras que admirava profundamente na vida partidária. Destaco as saídas de Erundina, Gabeira, Cristovam Buarque e Marina Silva. A cada um, vi o PT ficar menor moralmente. Nenhum deles teve uma alternativa partidária à altura do que sonhavam quando construíam PT. Ao contrário, foram para partidos tão complicados quanto ao PT. Partidos com donos e com histórico de pragmatismo tão criticável quanto o que o PT estava adotando. PDT, PSB e PV não vão ficar para a história como exemplos de coerência ideológica. Deixaram os que ficaram no PT mais dependentes dos excessivamente pragmáticos.

Aqui em Pernambuco, acompanho Maurício Rands há muito tempo. Votei nele nas suas três eleições para deputado federal. Com sua saída, mais uma vez o PT diminui. Lamento profundamente a sua decisão. No entanto, apesar de não ter vida partidária, já que não participo de núcleos e não vou a encontros, mantenho-me filiado. Acho que, apesar de estar o PT em destroços, não visualizo nenhum partido que o substitua. O PSOL foi criado por ex-petistas, mas, ainda, é uma caricatura de partido, tentando encontrar um PT das origens, que nunca mais existirá, e gastando quase todas as suas energias para criticar o PT que está aí. Votarei na chapa petista para a Prefeitura. Mas tão sem ânimo quanto na eleição de João da Costa. Naquele ano, não pedi votos, não defendi o candidato. Estava desanimado pela forma como o nome dele havia sido imposto.

Continuo filiado, mas aposto mais em uma espécie de "ecumenismo de esquerda". Um diálogo com ex-petistas e pessoas sem vínculo partidário, mas que têm posições claras em defesa da democracia, em defesa de uma regulação eficaz da economia pelo Estado e da assunção pelo Estado dos grandes problemas sociais que o país ainda enfrenta. Também temos uma agenda política importante em defesa de direitos humanos em um país no qual a cultura dominante é autoritária. Defesa de direitos das mulheres, direitos de homosexuais, direitos indígenas, igualdade racial, dentre outras causas que têm tantos inimigos.



segunda-feira, abril 09, 2012

Classificar para proteger


O Supremo Tribunal Federal iniciou, no final do ano passado, o julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) que ataca o dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 254) que trata da chamada classificação indicativa. O dispositivo questionado fixa multa para emissoras que veicularem programação fora do horário indicado na classificação. Consideramos que o início do julgamento não foi nada bom, prevalecendo argumentos pela inconstitucionalidade da regra, fundados, principalmente, em uma visão liberal de que o controle não deve caber ao Estado.

O argumento de que o controle cabe apenas aos pais incorre em um conjunto de erros, dos quais destacamos dois: (i) considera que o processo de formação de crianças e adolescentes interessa apenas à família; (ii) desconsidera a situação de crianças de famílias de baixa renda, expostas à TV, quase que durante todo o dia, sem a supervisão de adultos. Também é estranho que uma Constituição social como a nossa seja interpretada por lentes ultraliberais  e que essa interpretação, claramente incompatível com a Constituição, reverbere no Judiciário.

Quando alguém diz que o único controle sobre o que crianças e adolescentes assistem é o controle remoto, revela uma leitura do mundo com os olhos de sua classe social. Crianças de famílias ricas ou de classe media podem estar, quase que na totalidade do tempo, acompanhadas de adultos. Mas isso não é a realidade da maioria dos lares no Brasil. Muitos trabalhadores deixam os seus filhos sozinhos em casa e a televisão aberta está ali, à disposição, sendo, inclusive, auxiliar na contenção dessas crianças, que passam horas frente aos aparelhos sem que qualquer adulto saiba o que assistem.

Essas crianças e adolescentes, expostas, por exemplo, a violência ou a cenas de sexo, levarão os problemas causados nesse processo de formação para suas vidas em sociedade. O que as crianças assistem não interessa somente aos pais, mas a todos nós. Alguém pode dizer que é paternalismo. Em certo grau, é mesmo.

O Estado social é caracterizado pela assunção de um conjunto de temáticas que, no Estado liberal, eram deixadas exclusivamente à decisão do indivíduo. É assim com o contrato de trabalho, que Constituição e legislação fixam conteúdos mínimos, impedindo que pessoas se submetam a condições degradantes. É assim com a relação de consumo, que o ordenamento fixa garantias ao consumidor e impõe deveres ao fornecedor. É assim com a saúde, quando hábitos individuais como fumar, beber, usar drogas, entre outros, passam a ser de interesse de toda a sociedade. Assim é, também, com a educação de crianças e adolescentes.

Uma postura indiferente do Estado em relação ao processo formativo de crianças e adolescentes não combina com uma Constituição que, na sua ordem social, dedica um capítulo inteiro à Família, à Criança, ao Adolescente, ao Jovem e ao Idoso (título VIII, capítulo VII).

“Infância” e “adolescência” são invenções históricas, decisões da sociedade, que permitiram a proteção de um processo complexo de formação das pessoas. Há, nesse período, um conjunto de interdições, excluídos os indivíduos nessas faixas etárias do gozo de certos direitos, mas, também, não assumindo as responsabilidades dos “adultos”. Deixar esse processo ao laissez-faire vai contra a própria ideia protetiva que inspira o nascimento dos conceitos.

Além disso, os adversários da possibilidade de classificar e punir a não observância da classificação alegam que haveria ofensa à liberdade de expressão. Como outras liberdades, a liberdade de expressão não pode ser tomada como absoluta.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal adotou, nos últimos anos, uma Teoria dos Direitos Fundamentais, de inspiração alemã, que vê os direitos como elementos de um sistema, no qual há diversas interações entre direitos, sendo o “princípio da proporcionalidade” chamado a socorrer o intérprete na aferição de possíveis excessos na relativização dos direitos. Ver a liberdade de expressão como absoluta seria de uma incoerência sem nome.

Caso fosse tal liberdade absoluta, seria inconstitucional qualquer criminalização da palavra. Dessa forma, dispositivos da legislação penal que definem como crimes injúria, calúnia e difamação seriam eivados de inconstitucionalidade. Por que é crime a ofensa à honra de um indivíduo e não podem ser punidas ofensas muito mais graves ao processo de formação de crianças e adolescentes?

Não há argumento razoável e nem fundamento na Constituição para justificar que a exibição de um filme como o “O Império dos Sentidos”, às 9h da manhã, em um programa infantil, está no âmbito protegido da Liberdade de Expressão.

Quando falamos em regular horários para exibição de programas de televisão, estamos diante de um debate sobre educação, que, segundo a nossa Constituição, é dever do Estado e da família (art. 205). A classificação indicativa é um singelo instrumento de defesa. Caso nem ela, como está fragilmente posta na legislação atual, sobreviva, posso apostar que o Estado nunca irá cumprir seu dever constitucional de “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221” (art. 220, § 3o, II), pois qualquer outro instrumento nesse sentido será acusado de inconstitucional.

O discurso ultraliberal chega a falar que tal classificação só seria legítima se fosse uma autoclassificação, o que não tem qualquer respaldo no texto constitucional. O art. 220 da Constituição da República, no seu § 3o, I, diz caber à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada” (grifei). O art. 21 é, também, claro ao dizer que compete à União “exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”.

Algumas das maiores democracias do mundo têm regras para proteção de crianças frente aos perigos que a radiodifusão apresenta, sem que esteja comprometida a natureza democrática de tais estados. Na Austrália, p.ex., Australian Communications and Media Authority (ACMA) é responsável pela execução do sistema classificatório previsto no Children’s Television Standards 2009. Nos Estados Unidos, a agência reguladora da comunicação, a Federal Communications Commission (FCC), estabelece regra, inclusive, sobre o tempo máximo de comerciais na programação infantil.

Mesmo que fosse possível constitucionalmente retirar a tarefa da classificação do Poder Público e repassar aos próprios radiodifusores, isso não seria recomendado. A demonização do Estado – quando se debate regulação da  comunicação – vem sempre acompanhada de uma sacralização dos agentes privados. É uma deturpação evidente da realidade. Os males que acometem o Estado também são verificados nas empresas, sendo que, no caso delas, o controle é ainda mais difícil. Há casos e mais casos de autocensura em meios de comunicação e que chegam ao conhecimento do público apenas muito tempo após as omissões ocorrerem.

Os adversários do Estado, notadamente os ideologicamente ultraliberais, costumam caracterizá-lo como um monstro unidimensional, o que está longe da realidade do Estado em uma democracia constitucional como a nossa. O Estado está repleto de órgãos com alto ou médio grau de independência do poder político – Ministério Público, Tribunais de Contas, Controles Internos, Agencias Reguladoras, Conselhos Tutelares, dentre outros. Isso nos mostra que é possível criar órgãos protegidos, dentro do Estado, toda vez que atribuirmos a ele uma tarefa desconfiando de um possível futuro mau uso dos poderes correspondentes.

Não podemos, ainda, esquecer que qualquer regra geral sobre a “classificação indicativa” ou os atos concretos de classificação estarão sujeitos a um amplo debate público e ao controle judicial da constitucionalidade, caso constatados erros ou excessos.

Nesse tema, acho que a postura mais adequada deve somar razoáveis doses ceticismo e esperança, que nos permitam vigiar o Estado classificador, contra eventuais ilícitos, mas reconhecendo que só através dele será possível fazer a classificação determinada no texto constitucional.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Marco Maciel e o Salão Nobre

Sei que vou frustar os que imaginavam que eu somaria na campanha contra a participação de Marco Maciel, como palestrante, na reinauguração do Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife.


Caros amigos,
Em razão das manifestações dos meus amigos Da Maia e Larissa, quero informar que a minha ausência no evento de hoje não significa qualquer protesto. Por questões pessoais, não poderei ir ao evento. Mas discordo das razões apresentadas pelos dois.
Não se trata de ato de homenagem ao convidado. Trata-se de celebração pela reinauguração do Salão Nobre. Para isso, eu não convidaria, caso fosse o responsável pelo evento, Marco Maciel. Mas acho legítimo que a Faculdade opte por esse palestrante.
Acho que o protesto dos amigos mostra a necessidade urgente do país ver funcionando uma Comissão da Verdade. Precisamos, de alguma forma, conhecer as responsabilidades. Não quero dividir os que exerceram cargos importantes na ditadura entre o grupo dos que estão purificados, por apoiarem hoje o governo que apóio, e o grupo dos que ainda estão impuros, por insistirem ideologicamente em estar do lado de lá.
Acho, até, mais respeitáveis os que se mostram fiéis a uma concepção de mundo com  a qual não concordo do que aqueles que mudaram de lado por cargos ou recursos públicos.
Quero uma Faculdade aberta, com a presença, nos seus diversos eventos, de pessoas com quem concordo e pessoas de quem discordo ideologicamente.
Acho que o que precisa ser ressaltado agora é o esforço que Luciana fez, buscando recursos, viabilizando processos administrativos necessários à concretização da obra e acompanhando de perto toda a restauração. Isso não pode ser ofuscado. Isso é o que se comemora hoje.
Abraços,
Gustavo Ferreira Santos

sexta-feira, julho 15, 2011

Quatro teses sobre o controle judicial de políticas públicas

I

Dar a um o que não pode ser entregue a todos os iguais, por clara inviabilidade financeira de uma possível pretensão coletiva, remete-nos a um mundo pré-revolução francesa, onde não tínhamos direitos, mas privilégios.


II

Decisão judicial que manda dar algo que não compõe uma política pública não acrescerá recursos aos cofres públicos. Portanto, resultará em remanejamento de recursos, o que pode gerar, a depender da origem dos recursos, uma injustiça maior do que deixar o demandante sem aquela nova providência que buscava.

III


Nenhuma interpretação da Constituição revelará o ponto ótimo da destinação de recursos públicos. Apenas indicará um vasto campo entre o que está claramente de acordo e o claramente em desacordo com o texto constitucional. Nesse campo, apenas o embate saudável de idéias nas instituições abertas da política pode resultar em uma decisão legítima. 

IV

Discorda de uma política pública razoavelmente fundamentável na Constituição? Candidate-se. Engaje-se em um partido ou outra organização da sociedade civil.