quarta-feira, junho 15, 2011

Liberdade de expressão e direito à comunicação


Segue o texto de um artigo que, no ano passado, publiquei na revista do PPGD da PUC-RS (SANTOS, Gustavo Ferreira . Da liberdade de expressão ao direito à comunicação. Direitos fundamentais & justiça, v. 10, p. 200-204, 2010.)

DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO AO DIREITO À COMUNICAÇÃO

Vivemos uma época marcada por um destaque especial dos meios de comunicação na vida social. Além dos clássicos meios, surgem cotidianamente novas possibilidades de comunicação. O alcance dos meios coloca hoje problemas que não podem ser resolvidos com os velhos parâmetros cunhados em tempos nos quais a imprensa tinha dimensões mais modestas. Uma das questões mais importantes é dimensionar as conseqüências das normas constitucionais que tocam a comunicação.
Basicamente, duas posições disputam os rumos da interpretação da regulação constitucional da comunicação social. De um lado, há uma posição que tem por principal preocupação a liberdade individual. Com um colorido liberal, preocupando-se com a autonomia do indivíduo. Para tal posição, quanto menos atividade estatal melhor. De outro lado, há os que se preocupam com a produção de um espaço no qual as opiniões serão apresentadas, com garantias de oportunidades para os diversos grupos que disputam o poder. Para essa posição, a regulação estatal é justificável em relação a alguns problemas.
Essas duas são matizadas, existindo, nos dois campos, posicionamentos mais radicais.
Do lado dos opositores da regulação, há posicionamentos libertários, como, por exemplo, o de Raoul Vaneigen, que defende o fim de qualquer limitação à liberdade de expressão. Não seriam passíveis de restrição nem mesmo os discursos ofensivos ao indivíduo, tradicionalmente criminalizados, com tipos como injúria, calúnia e difamação. Todos os excessos do discurso seriam resolvidos com mais discurso.
Do lado dos defensores da regulação, há posicionamentos voluntaristas e instrumentais, que vêm a intervenção como forma de transformar os meios em auxiliares de uma luta por uma tipo de sociedade e de calar posicionamentos incovenientes. Esse tipo de posicionamento está subjacente em discursos de algumas posições políticas de esquerda.
Aqui, vou trabalhar com posicionamentos moderados, dos dois lados, que são enquadráveis na tradição da democracia constitucional. Owen Fiss localiza as duas propostas na tradição liberal.
O discurso da auto-regulação é característico do grupo que teme o Estado. Como é conveniente às empresas de comunicação, que têm o grande poder de comunicar a longo alcance, essa posição hoje é a mais difundida no país. Empresas e empresários fomentam um discurso de que dar ao Estado o poder de regular a mídia sempre resultaria em censura. Utilizam a “liberdade de expressão” como álibi para atingir seus interesses marcadológicos. Agem como se fossem donos do discurso da “liberdade de expressão”.
Os inimigos da regulação falam, sempre, em nome das liberdades. No entanto, deixam de reconhecer que as modernas democracias constitucionais funcionam buscando um equilíbrio entre “liberdades liberais” e “liberdades democráticas” (BOVERO, 2002). Não se trata apenas de garantir, por meio de uma Constituição, espaços livres ao indivíduo, nos quais eles possam atuar sem constrangimentos externos – objetivo das liberdades herdadas do constitucionalismo liberal. É necessário que seja garantida a igual participação desses indivíduos na formação da vontade geral, nas decisões sobre negócios públicos. Muitas vezes, é mais ameaçador a essa autonomia política a manipulação da informação e da opinião do que qualquer constrição explícita.
Michelangelo Bovero questiona até que ponto estamos seguros de que nossa vontade política é autônoma, independente do poder-querer de alheio, afirmando:
Refiro-me nem tanto ao poder que condiciona o agir, impedindo e coagindo, proibindo e obrigando”, mas ao poder que condiciona a vontade, fornecendo informações parciais ou deformadas, apresentando problemas em termos distorcidos, não apresentando outros problemas tão ou mais relevantes, sugerindo critérios de juízo inadequados ou de alguma forma maquiados; em suma,fazendo-nos olhar através de lentes deformadoras que nos impedem de ver corretamente a realidade, de julgar com ponderações, de decidir com a nossa própria cabeça, em uma palavra, de querer autonomamente. (2002, p. 91)
Uma democracia precisa garantir a liberdade de expressão. Esse poder individual de manifestar sem constrangimentos externos a opinião está ligado ao direito fundamental à participação no processo democrático. Vedações ao discurso podem significar desequilíbrios na disputa política. Por isso, devem ser vistas sempre com desconfiança.
Essa é o pano de fundo do dilema em torno da regulação do “discurso do ódio”. Na Alemanha, que sofreu fortemente as conseqüências de um discurso político manipulador, mais facilmente se justifica a proibição do discurso que fomenta o ódio, o que resulta, por exemplo, na criminalização do uso da suástica. Nos EUA, há uma dificuldade maior da aceitação da vedação. No entanto, a história do tratamento jurisdicional do tema demonstra um abandono gradual da posição que absolutiza a liberdade. Decisões sobre a cerimônia da queima da cruz, levadas a cabo pela Ku Klux Klan, mostram isso.
A discussão sobre a regulação do discurso de incitação ao ódio é apenas uma faceta de um problema maior que, para usar uma expressão de Owen Fiss (2005), é o “efeito silenciador do discurso”. O discurso pode impedir outros discursos, havendo certas formas de discurso que precisam ser contidas em seus excessos pelo Estado.
Muito do nosso debate constitucional sofre influência do debate norte-americano sobre a primeira emenda, que determina que o Congresso não edite leis limitando a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa:
Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the government for a redress of grievances.
Transferimos para nosso sistema a versão mais liberal da leitura desse dispositivo, que parece absolutizar a liberdade, em detrimento de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Mas temos uma estrutura constitucional que não só permite como parece determinar o exercício da regulação.
  Um campo que exige uma regulação estatal e que a Constituição de 1988 assumiu como importante é da regulação da propriedade dos meios de comunicação. A regra com a proibição de monopólios é uma das mais importantes dentre as formas de intervenção estatal em matéria de comunicação. Ela está no art. 220:
Art. 220.(...)
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
Aparentemente é a mesma regulação que se faz em atividades econômicas, buscando evitar a concentração. No entanto, há diferenças fundamentais entre as duas formas de intervenção, que decorrem dos próprios motivos que as justificam. Enquanto a regulação econômica da concorrência busca garantir as posições dos outros participantes do mercado, na regulação da propriedade das mídias a preocupação vai além, alcançando os vínculos entre a livre circulação da informação e a democracia.
A possibilidade da concentração é uma constante ameaça à democracia, já que uma determinada posição política pode ter desproporcional poder no mercado de idéias. Quanto mais pulverizada a propriedade dos meios, mais os órgãos refletirão, em tese, a pluralidade que marca a sociedade.
A situação do Brasil nessa área é de falta de regra e alta concentração:
 “Em 2002, 58,7% das verbas de publicidade foram para a televisão aberta (Castro, Folha de S.Paulo, 10/03/2003). Do total gasto, em 2001, 78% foram para a Globo e suas afiliadas (Castro, Folha de S.Paulo, 06/03/2002)”. (Lima)
Além desse fenômeno de concentração, há outro grave problema no Brasil, que é a promiscuidade entre meios de comunicação e agentes políticos. Um grande número de repetidoras de TV e de emissoras de rádio está em poder de detentores de mandatos eletivos ou de seus familiares. Isso causa uma grave distorção nos processos eleitorais, já que essas pessoas têm  evidentes vantagens no embate de idéias que deveria caracterizar uma campanha. Porém, o mais grave é que isso reduz perspectivas de uma reforma legislativa constitucionalmente adequada.
Até nos EUA a propriedade dos meios já alcançou um alto grau de regulação, tendo passado por um processo de desregulamentação com a doutrina Bush, durante a administração do Michel Powell, filho do Colin Powell, na Federal Communications Commission (FCC).
Regular a propriedade dos meios de comunicação, evitando os monopólios, não representa qualquer ameaça à democracia, pelo contrário, é condição para que ela se desenvolva.
Essa atuação de controle da propriedade é importante, inclusive para evidenciar a falta, no Brasil de uma política de respeito à radiodifusão comunitária. Rádios e TVs comunitárias podem representar a realização dos princípios contidos no art. 221 da Constituição, em especial o do inciso II, que determina a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação”.
A legislação atual é excessivamente restritiva e a condução dos processos administrativos que avaliam pedidos de novas rádios comunitárias é lenta e pouco transparente, o que tem levado iniciativas reais de radiodifusão comunitária à clandestinidade. Associam-se o aparato repressivo do Estado e a grande mídia na caça das rádios não-autorizadas.
As razões que justificam a imposição de limites às instituições midiáticas podem, no entanto, sustentar intervenções estatais que sufoquem a livre circulação da informação e a livre manifestação do pensamento. Existem estratégias de contenção dos excessos dos meios de comunicação que não passam pela outorga ao Estado de poderes especiais. Nesse sentido, é importante destacar os chamados MAS (media accountability systems).
Segundo Claude-Jean Bertrand (2002, p. 35), pode-se chamar de MAS “quaisquer meios de melhorar os serviços de mídia ao público, totalmente independentes do governo”. Incluem-se nesse conceito instituições voltadas a discutir a qualidade da mídia – por exemplo, o Observatório da Imprensa – um ombusdman, uma agência independente de regulação do jornalismo, comitês de ética, dentre outros.
Dessa forma, queremos finalizar destacando que discutir a liberdade de expressão será sempre uma tarefa dos democratas. Mas falar somente em liberdade de expressão com um olhar liberal é insuficiente, já que precisamos democratizar o acesso aos meios, acabando com o muro que divide a sociedade entre os que falam e os que gritam.

REFERÊNCIAS

BERTRAND, Claude – Jean. O arsenal da democracia: Sistemas de Responsabilização da Mídia. São Paulo: Universidade do Sagrado Coração, 2002.
FISS, Owen M. A Ironia da liberdade de expressão : estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro : Renovar, 2005
VANEIGEM, Raoul. Nada é sagrado, tudo pode ser dito - reflexões sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola, 2004
LIMA, Venício. Existe concentração na mídia brasileira? Sim. Observatório da Imprensa. 01/07/2003. Disponível em <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/plq010720031.htm>. Acesso em 15/10/2009.

sexta-feira, junho 03, 2011

Sobre a proibição da cobrança em estacionamentos de shoppings, supermercados etc.


Em 2009, publiquei um capítulo em um livro organizado por Francisco Queiroz Cavalcanti e Cláudio Brandão, sobre o tema hoje em destaque. Segue, abaixo, o texto:

SANTOS, Gustavo Ferreira . A competência legislativa do Município e o direito fundamental ao bem-estar dos habitantes da cidade: reflexões iniciais. In: Cavalcanti, Francisco; Brandão, Claudio. (Org.). Constitucionalização do Direito Positivo: Teoria Hernenêutica e Aplicação. Recife: Nossa Livraria, 2009.



A competência legislativa do Município e o direito fundamental ao bem-estar dos habitantes da cidade: reflexões iniciais

I

A interpretação sobre o sistema constitucional de repartição de competências pode levar ao achatamento do espaço ocupado pelas entidades municipais na federação. Basta que a interpretação do art. 22, I, da Constituição seja escorada em um conceito amplo do que vem a ser direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial ou do trabalho. É comum que os incomodados com normas municipais intervencionistas recorram ao argumento de que não se trata de matéria sob a competência do Município, sendo o art. 22, I, um potente aliado nessa luta.

Neste trabalho, encetaremos uma reflexão sobre a competência legislativa municipal a partir do exemplo das normas municipais que proíbem a certos agentes econômicos a cobrança pelo estacionamento oferecido ao cliente. A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando da análise da constitucionalidade de leis que tratam desse tema é desfavorável ao Município, considerando que se trata de matéria de direito civil. Após a atenta leitura das decisões que expressaram esse entendimento, construímos uma outra forma de interpretar a competência, discordando do seu enquadramento no chamado direito civil.

II

A Constituição da República Federativa do Brasil deve ser classificada como uma constituição dirigente. Nela estão traçadas algumas metas que guiarão as atividades legislativa e administrativa do Estado.

No plano do catálogo constitucional de direitos fundamentais, a Constituição de 1988 foi além das liberdades clássicas, que caracterizam a primeira leva de constituições da modernidade, de matiz liberal, e foi, ainda, além das constituições que caracterizam o estado social, repletas de normas de intervenção na relação de trabalho e normas habilitadoras do poder público para a solução de problemas sociais, especialmente com deveres de prestação de serviços. A nossa Constituição alberga direitos de novo tipo, os chamados direitos difusos, que não têm por titulares indivíduos ou grupos determinados, mas protegem toda a sociedade.

O mais discutido desses direitos é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A dizer que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225), a Constituição cria, a um só tempo, um direito e uma vedação que atingem a todos. O direito será consubstanciado em uma pretensão de que certas características do meio ambiente sejam preservadas, com uma atuação positiva do Estado na proteção dos bens ambientais. A vedação dirige-se contra qualquer um que pratique ou ameace praticar atos atentatórios ao meio-ambiente.

A interpretação dos dispositivos constitucionais que consagram o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental não é fácil. Os tradicionais esquemas teóricos de compreensão das liberdades clássicas ou dos direitos sociais prestacionais não captam toda a complexidade que marca um direito difuso.

O capítulo da política urbana, na ordem econômica (capítulo II do título VII), não se resume a estabelecer regras de atuação da Administração pública na ordenação do solo urbano. O art. 182 da Constituição estabelece que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Esse dispositivo consagra um outro direito fundamental: o direito difuso ao bem-estar, titularizado pelos habitantes da cidade.

O próprio art. 182 dá, em seus parágrafos primeiro e segundo, papel de relevo ao Município, quando estabelece que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” e que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. A interpretação desses dispositivos há de ser feita em cotejo com o dispositivo do art. 30, I, que consagra a competência legislativa para assuntos de interesse local.


III


O Supremo Tribunal Federal já se manifestou em diversas oportunidades no sentido da inconstitucionalidade formal de normas de estados e municípios que tratam de gratuidade de estacionamentos (Por exemplo, ADI-MC 1623, ADI 1472 e ADI 1918).

Tais decisões, ao nosso ver, não captaram, ainda, as profundas alterações no direito constitucional pátrio, com a ampliação do espaço protegido por normas de direitos fundamentais, com implicações claras no sistema de repartição de competências. Consideram tais decisões que as normas sobre gratuidade do estacionamento como normas de direito civil, enquadráveis, portanto, na competência legislativa da União, definida no art. 22, I.

Essa leitura deixa de compreender o problema sob uma perspectiva constitucional integral, reduzindo a solução do problema a uma concepção privatista que é claramente incompatível com o tratamento constitucional da cidade.

IV

A legislação urbanística quando exige o oferecimento de estacionamento não o faz por meras questões estéticas ou por capricho. Há razões urbanísticas evidentes para isso. Em especial, preocupa-se o legislador com o impacto viário que a instalação de determinada atividade produzirá na vida dos habitantes da cidade.

Quando há a cobrança pelo estacionamento, os motoristas não necessariamente, ao procurarem uma atividade econômica, utilizam o estacionamento que a lei determinou que fosse oferecido na edificação. Antes, haverá uma avaliação de custo/benefício, podendo a decisão ser contrária à política urbanística, ou seja, diante do desejo de se furtar ao pagamento, o motorista buscará estacionar em área pública, causando o impacto que a legislação urbanística quis evitar ao tornar obrigatório o oferecimento do estacionamento.

Deve-se diferenciar o estacionamento oferecido por determinação legal do estacionamento como atividade econômica.

Ninguém questiona o fato de que os estacionamentos podem ser construídos para que sejam explorados economicamente. Da mesma forma que posso construir um hotel e cobrar pela hospedagem, também posso construir um estacionamento garagem e cobrar pelo estacionamento. Nesses casos, estaremos claramente diante de uma atividade econômica, sujeita, como outras, a exigências legais.

Outra coisa totalmente distinta são as vagas de estacionamento que, nas edificações urbanas, são previstas em lei. As atividades urbanas que atraem certo público provocam impactos viários que são, em certa medida, compensados, com o oferecimento de vagas de estacionamento.

Estranha a permissão para que seja cobrado o uso de facilidades em construções que a lei determinou que fossem oferecidas, com clara finalidade de redução de impacto do empreendimento. A rigor, não se pode falar que há o oferecimento do estacionamento, haja vista que o cliente tenderá, em muitos casos, a estacionar fora do espaço que a lei mandou reservar para automóveis.

A permanecer vigente o entendimento de que se trata de direito civil – seja considerando que se trata de relação contratual entre empresa e cliente, seja considerando que se acha de conteúdo material da propriedade, no futuro poderemos ter, naquelas vagas recuadas em frente a edificações destinadas ao comércio, correntes estendidas e funcionários cobrando do cliente pelo tempo que o seu veículo permeneceu estacionado.