O
Supremo Tribunal Federal iniciou, no final do ano passado, o julgamento de uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) que ataca o dispositivo do
Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 254) que trata da chamada
classificação indicativa. O dispositivo questionado fixa multa para emissoras
que veicularem programação fora do horário indicado na classificação. Consideramos
que o início do julgamento não foi nada bom, prevalecendo argumentos pela
inconstitucionalidade da regra, fundados, principalmente, em uma visão liberal
de que o controle não deve caber ao Estado.
O
argumento de que o controle cabe apenas aos pais incorre em um conjunto de
erros, dos quais destacamos dois: (i) considera que o processo de formação de
crianças e adolescentes interessa apenas à família; (ii) desconsidera a
situação de crianças de famílias de baixa renda, expostas à TV, quase que
durante todo o dia, sem a supervisão de adultos. Também é estranho que uma
Constituição social como a nossa seja interpretada por lentes ultraliberais e que essa interpretação, claramente
incompatível com a Constituição, reverbere no Judiciário.
Quando alguém diz que o
único controle sobre o que crianças e adolescentes assistem é o controle remoto,
revela uma leitura do mundo com os olhos de sua classe social. Crianças de
famílias ricas ou de classe media podem estar, quase que na totalidade do
tempo, acompanhadas de adultos. Mas isso não é a realidade da maioria dos lares
no Brasil. Muitos trabalhadores deixam os seus filhos sozinhos em casa e a
televisão aberta está ali, à disposição, sendo, inclusive, auxiliar na
contenção dessas crianças, que passam horas frente aos aparelhos sem que
qualquer adulto saiba o que assistem.
Essas crianças e
adolescentes, expostas, por exemplo, a violência ou a cenas de sexo, levarão os
problemas causados nesse processo de formação para suas vidas em sociedade. O
que as crianças assistem não interessa somente aos pais, mas a todos nós.
Alguém pode dizer que é paternalismo. Em certo grau, é mesmo.
O
Estado social é caracterizado pela assunção de um conjunto de temáticas que, no
Estado liberal, eram deixadas exclusivamente à decisão do indivíduo. É assim
com o contrato de trabalho, que Constituição e legislação fixam conteúdos
mínimos, impedindo que pessoas se submetam a condições degradantes. É assim com
a relação de consumo, que o ordenamento fixa garantias ao consumidor e impõe
deveres ao fornecedor. É assim com a saúde, quando hábitos individuais como
fumar, beber, usar drogas, entre outros, passam a ser de interesse de toda a
sociedade. Assim é, também, com a educação de crianças e adolescentes.
Uma
postura indiferente do Estado em relação ao processo formativo de crianças e
adolescentes não combina com uma Constituição que, na sua ordem social, dedica
um capítulo inteiro à Família, à Criança, ao Adolescente, ao Jovem e ao Idoso (título VIII,
capítulo VII).
“Infância”
e “adolescência” são invenções históricas, decisões da sociedade, que permitiram
a proteção de um processo complexo de formação das pessoas. Há, nesse período,
um conjunto de interdições, excluídos os indivíduos nessas faixas etárias do
gozo de certos direitos, mas, também, não assumindo as responsabilidades dos
“adultos”. Deixar esse processo ao laissez-faire
vai contra a própria ideia protetiva que inspira o nascimento dos
conceitos.
Além
disso, os adversários da possibilidade de classificar e punir a não observância
da classificação alegam que haveria ofensa à liberdade de expressão. Como
outras liberdades, a liberdade de expressão não pode ser tomada como absoluta.
A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal adotou, nos últimos anos, uma Teoria
dos Direitos Fundamentais, de inspiração alemã, que vê os direitos como
elementos de um sistema, no qual há diversas interações entre direitos, sendo o
“princípio da proporcionalidade” chamado a socorrer o intérprete na aferição de
possíveis excessos na relativização dos direitos. Ver a liberdade de expressão
como absoluta seria de uma incoerência sem nome.
Caso
fosse tal liberdade absoluta, seria inconstitucional qualquer criminalização da
palavra. Dessa forma, dispositivos da legislação penal que definem como crimes
injúria, calúnia e difamação seriam eivados de inconstitucionalidade. Por que é
crime a ofensa à honra de um indivíduo e não podem ser punidas ofensas muito
mais graves ao processo de formação de crianças e adolescentes?
Não
há argumento razoável e nem fundamento na Constituição para justificar que a
exibição de um filme como o “O Império dos Sentidos”, às 9h da manhã, em um
programa infantil, está no âmbito protegido da Liberdade de Expressão.
Quando
falamos em regular horários para exibição de programas de televisão, estamos
diante de um debate sobre educação, que, segundo a nossa Constituição, é dever
do Estado e da família (art. 205). A classificação indicativa é um singelo
instrumento de defesa. Caso nem ela, como está fragilmente posta na legislação
atual, sobreviva, posso apostar que o Estado nunca irá cumprir seu dever
constitucional de “estabelecer os
meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem
de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no
art. 221” (art. 220, § 3o, II), pois qualquer outro instrumento nesse sentido será acusado de
inconstitucional.
O discurso ultraliberal
chega a falar que tal classificação só seria legítima se fosse uma autoclassificação,
o que não tem qualquer respaldo no texto constitucional. O art. 220 da
Constituição da República, no seu §
3o, I, diz caber à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza
deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua
apresentação se mostre inadequada” (grifei). O art. 21 é, também, claro ao
dizer que compete à União “exercer a classificação, para efeito indicativo, de
diversões públicas e de programas de rádio e televisão”.
Algumas
das maiores democracias do mundo têm regras para proteção de crianças frente
aos perigos que a radiodifusão apresenta, sem que esteja comprometida a
natureza democrática de tais estados. Na Austrália, p.ex., Australian
Communications and Media Authority (ACMA) é responsável pela execução do
sistema classificatório previsto no Children’s
Television Standards 2009. Nos Estados Unidos, a agência reguladora
da comunicação, a Federal Communications Commission (FCC), estabelece regra,
inclusive, sobre o tempo máximo de comerciais na programação infantil.
Mesmo que fosse possível
constitucionalmente retirar a tarefa da classificação do Poder Público e
repassar aos próprios radiodifusores, isso não seria recomendado. A demonização
do Estado – quando se debate regulação da
comunicação – vem sempre acompanhada de uma sacralização dos agentes
privados. É uma deturpação evidente da realidade. Os males que acometem o
Estado também são verificados nas empresas, sendo que, no caso delas, o
controle é ainda mais difícil. Há casos e mais casos de autocensura em meios de
comunicação e que chegam ao conhecimento do público apenas muito tempo após as
omissões ocorrerem.
Os adversários do Estado, notadamente os ideologicamente
ultraliberais, costumam caracterizá-lo como um monstro unidimensional, o que
está longe da realidade do Estado em uma democracia constitucional como a
nossa. O Estado está repleto de órgãos com alto ou médio grau de independência
do poder político – Ministério Público, Tribunais de Contas, Controles
Internos, Agencias Reguladoras, Conselhos Tutelares, dentre outros. Isso nos
mostra que é possível criar órgãos protegidos, dentro do Estado, toda vez que
atribuirmos a ele uma tarefa desconfiando de um possível futuro mau uso dos
poderes correspondentes.
Não podemos, ainda,
esquecer que qualquer regra geral sobre a “classificação indicativa” ou os atos
concretos de classificação estarão sujeitos a um amplo debate público e ao
controle judicial da constitucionalidade, caso constatados erros ou excessos.
Nesse
tema, acho que a postura mais adequada deve somar razoáveis doses ceticismo e
esperança, que nos permitam vigiar o Estado classificador, contra eventuais
ilícitos, mas reconhecendo que só através dele será possível fazer a
classificação determinada no texto constitucional.