segunda-feira, abril 09, 2012

Classificar para proteger


O Supremo Tribunal Federal iniciou, no final do ano passado, o julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) que ataca o dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 254) que trata da chamada classificação indicativa. O dispositivo questionado fixa multa para emissoras que veicularem programação fora do horário indicado na classificação. Consideramos que o início do julgamento não foi nada bom, prevalecendo argumentos pela inconstitucionalidade da regra, fundados, principalmente, em uma visão liberal de que o controle não deve caber ao Estado.

O argumento de que o controle cabe apenas aos pais incorre em um conjunto de erros, dos quais destacamos dois: (i) considera que o processo de formação de crianças e adolescentes interessa apenas à família; (ii) desconsidera a situação de crianças de famílias de baixa renda, expostas à TV, quase que durante todo o dia, sem a supervisão de adultos. Também é estranho que uma Constituição social como a nossa seja interpretada por lentes ultraliberais  e que essa interpretação, claramente incompatível com a Constituição, reverbere no Judiciário.

Quando alguém diz que o único controle sobre o que crianças e adolescentes assistem é o controle remoto, revela uma leitura do mundo com os olhos de sua classe social. Crianças de famílias ricas ou de classe media podem estar, quase que na totalidade do tempo, acompanhadas de adultos. Mas isso não é a realidade da maioria dos lares no Brasil. Muitos trabalhadores deixam os seus filhos sozinhos em casa e a televisão aberta está ali, à disposição, sendo, inclusive, auxiliar na contenção dessas crianças, que passam horas frente aos aparelhos sem que qualquer adulto saiba o que assistem.

Essas crianças e adolescentes, expostas, por exemplo, a violência ou a cenas de sexo, levarão os problemas causados nesse processo de formação para suas vidas em sociedade. O que as crianças assistem não interessa somente aos pais, mas a todos nós. Alguém pode dizer que é paternalismo. Em certo grau, é mesmo.

O Estado social é caracterizado pela assunção de um conjunto de temáticas que, no Estado liberal, eram deixadas exclusivamente à decisão do indivíduo. É assim com o contrato de trabalho, que Constituição e legislação fixam conteúdos mínimos, impedindo que pessoas se submetam a condições degradantes. É assim com a relação de consumo, que o ordenamento fixa garantias ao consumidor e impõe deveres ao fornecedor. É assim com a saúde, quando hábitos individuais como fumar, beber, usar drogas, entre outros, passam a ser de interesse de toda a sociedade. Assim é, também, com a educação de crianças e adolescentes.

Uma postura indiferente do Estado em relação ao processo formativo de crianças e adolescentes não combina com uma Constituição que, na sua ordem social, dedica um capítulo inteiro à Família, à Criança, ao Adolescente, ao Jovem e ao Idoso (título VIII, capítulo VII).

“Infância” e “adolescência” são invenções históricas, decisões da sociedade, que permitiram a proteção de um processo complexo de formação das pessoas. Há, nesse período, um conjunto de interdições, excluídos os indivíduos nessas faixas etárias do gozo de certos direitos, mas, também, não assumindo as responsabilidades dos “adultos”. Deixar esse processo ao laissez-faire vai contra a própria ideia protetiva que inspira o nascimento dos conceitos.

Além disso, os adversários da possibilidade de classificar e punir a não observância da classificação alegam que haveria ofensa à liberdade de expressão. Como outras liberdades, a liberdade de expressão não pode ser tomada como absoluta.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal adotou, nos últimos anos, uma Teoria dos Direitos Fundamentais, de inspiração alemã, que vê os direitos como elementos de um sistema, no qual há diversas interações entre direitos, sendo o “princípio da proporcionalidade” chamado a socorrer o intérprete na aferição de possíveis excessos na relativização dos direitos. Ver a liberdade de expressão como absoluta seria de uma incoerência sem nome.

Caso fosse tal liberdade absoluta, seria inconstitucional qualquer criminalização da palavra. Dessa forma, dispositivos da legislação penal que definem como crimes injúria, calúnia e difamação seriam eivados de inconstitucionalidade. Por que é crime a ofensa à honra de um indivíduo e não podem ser punidas ofensas muito mais graves ao processo de formação de crianças e adolescentes?

Não há argumento razoável e nem fundamento na Constituição para justificar que a exibição de um filme como o “O Império dos Sentidos”, às 9h da manhã, em um programa infantil, está no âmbito protegido da Liberdade de Expressão.

Quando falamos em regular horários para exibição de programas de televisão, estamos diante de um debate sobre educação, que, segundo a nossa Constituição, é dever do Estado e da família (art. 205). A classificação indicativa é um singelo instrumento de defesa. Caso nem ela, como está fragilmente posta na legislação atual, sobreviva, posso apostar que o Estado nunca irá cumprir seu dever constitucional de “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221” (art. 220, § 3o, II), pois qualquer outro instrumento nesse sentido será acusado de inconstitucional.

O discurso ultraliberal chega a falar que tal classificação só seria legítima se fosse uma autoclassificação, o que não tem qualquer respaldo no texto constitucional. O art. 220 da Constituição da República, no seu § 3o, I, diz caber à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada” (grifei). O art. 21 é, também, claro ao dizer que compete à União “exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”.

Algumas das maiores democracias do mundo têm regras para proteção de crianças frente aos perigos que a radiodifusão apresenta, sem que esteja comprometida a natureza democrática de tais estados. Na Austrália, p.ex., Australian Communications and Media Authority (ACMA) é responsável pela execução do sistema classificatório previsto no Children’s Television Standards 2009. Nos Estados Unidos, a agência reguladora da comunicação, a Federal Communications Commission (FCC), estabelece regra, inclusive, sobre o tempo máximo de comerciais na programação infantil.

Mesmo que fosse possível constitucionalmente retirar a tarefa da classificação do Poder Público e repassar aos próprios radiodifusores, isso não seria recomendado. A demonização do Estado – quando se debate regulação da  comunicação – vem sempre acompanhada de uma sacralização dos agentes privados. É uma deturpação evidente da realidade. Os males que acometem o Estado também são verificados nas empresas, sendo que, no caso delas, o controle é ainda mais difícil. Há casos e mais casos de autocensura em meios de comunicação e que chegam ao conhecimento do público apenas muito tempo após as omissões ocorrerem.

Os adversários do Estado, notadamente os ideologicamente ultraliberais, costumam caracterizá-lo como um monstro unidimensional, o que está longe da realidade do Estado em uma democracia constitucional como a nossa. O Estado está repleto de órgãos com alto ou médio grau de independência do poder político – Ministério Público, Tribunais de Contas, Controles Internos, Agencias Reguladoras, Conselhos Tutelares, dentre outros. Isso nos mostra que é possível criar órgãos protegidos, dentro do Estado, toda vez que atribuirmos a ele uma tarefa desconfiando de um possível futuro mau uso dos poderes correspondentes.

Não podemos, ainda, esquecer que qualquer regra geral sobre a “classificação indicativa” ou os atos concretos de classificação estarão sujeitos a um amplo debate público e ao controle judicial da constitucionalidade, caso constatados erros ou excessos.

Nesse tema, acho que a postura mais adequada deve somar razoáveis doses ceticismo e esperança, que nos permitam vigiar o Estado classificador, contra eventuais ilícitos, mas reconhecendo que só através dele será possível fazer a classificação determinada no texto constitucional.