sexta-feira, junho 03, 2011

Sobre a proibição da cobrança em estacionamentos de shoppings, supermercados etc.


Em 2009, publiquei um capítulo em um livro organizado por Francisco Queiroz Cavalcanti e Cláudio Brandão, sobre o tema hoje em destaque. Segue, abaixo, o texto:

SANTOS, Gustavo Ferreira . A competência legislativa do Município e o direito fundamental ao bem-estar dos habitantes da cidade: reflexões iniciais. In: Cavalcanti, Francisco; Brandão, Claudio. (Org.). Constitucionalização do Direito Positivo: Teoria Hernenêutica e Aplicação. Recife: Nossa Livraria, 2009.



A competência legislativa do Município e o direito fundamental ao bem-estar dos habitantes da cidade: reflexões iniciais

I

A interpretação sobre o sistema constitucional de repartição de competências pode levar ao achatamento do espaço ocupado pelas entidades municipais na federação. Basta que a interpretação do art. 22, I, da Constituição seja escorada em um conceito amplo do que vem a ser direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial ou do trabalho. É comum que os incomodados com normas municipais intervencionistas recorram ao argumento de que não se trata de matéria sob a competência do Município, sendo o art. 22, I, um potente aliado nessa luta.

Neste trabalho, encetaremos uma reflexão sobre a competência legislativa municipal a partir do exemplo das normas municipais que proíbem a certos agentes econômicos a cobrança pelo estacionamento oferecido ao cliente. A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando da análise da constitucionalidade de leis que tratam desse tema é desfavorável ao Município, considerando que se trata de matéria de direito civil. Após a atenta leitura das decisões que expressaram esse entendimento, construímos uma outra forma de interpretar a competência, discordando do seu enquadramento no chamado direito civil.

II

A Constituição da República Federativa do Brasil deve ser classificada como uma constituição dirigente. Nela estão traçadas algumas metas que guiarão as atividades legislativa e administrativa do Estado.

No plano do catálogo constitucional de direitos fundamentais, a Constituição de 1988 foi além das liberdades clássicas, que caracterizam a primeira leva de constituições da modernidade, de matiz liberal, e foi, ainda, além das constituições que caracterizam o estado social, repletas de normas de intervenção na relação de trabalho e normas habilitadoras do poder público para a solução de problemas sociais, especialmente com deveres de prestação de serviços. A nossa Constituição alberga direitos de novo tipo, os chamados direitos difusos, que não têm por titulares indivíduos ou grupos determinados, mas protegem toda a sociedade.

O mais discutido desses direitos é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A dizer que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225), a Constituição cria, a um só tempo, um direito e uma vedação que atingem a todos. O direito será consubstanciado em uma pretensão de que certas características do meio ambiente sejam preservadas, com uma atuação positiva do Estado na proteção dos bens ambientais. A vedação dirige-se contra qualquer um que pratique ou ameace praticar atos atentatórios ao meio-ambiente.

A interpretação dos dispositivos constitucionais que consagram o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental não é fácil. Os tradicionais esquemas teóricos de compreensão das liberdades clássicas ou dos direitos sociais prestacionais não captam toda a complexidade que marca um direito difuso.

O capítulo da política urbana, na ordem econômica (capítulo II do título VII), não se resume a estabelecer regras de atuação da Administração pública na ordenação do solo urbano. O art. 182 da Constituição estabelece que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Esse dispositivo consagra um outro direito fundamental: o direito difuso ao bem-estar, titularizado pelos habitantes da cidade.

O próprio art. 182 dá, em seus parágrafos primeiro e segundo, papel de relevo ao Município, quando estabelece que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” e que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. A interpretação desses dispositivos há de ser feita em cotejo com o dispositivo do art. 30, I, que consagra a competência legislativa para assuntos de interesse local.


III


O Supremo Tribunal Federal já se manifestou em diversas oportunidades no sentido da inconstitucionalidade formal de normas de estados e municípios que tratam de gratuidade de estacionamentos (Por exemplo, ADI-MC 1623, ADI 1472 e ADI 1918).

Tais decisões, ao nosso ver, não captaram, ainda, as profundas alterações no direito constitucional pátrio, com a ampliação do espaço protegido por normas de direitos fundamentais, com implicações claras no sistema de repartição de competências. Consideram tais decisões que as normas sobre gratuidade do estacionamento como normas de direito civil, enquadráveis, portanto, na competência legislativa da União, definida no art. 22, I.

Essa leitura deixa de compreender o problema sob uma perspectiva constitucional integral, reduzindo a solução do problema a uma concepção privatista que é claramente incompatível com o tratamento constitucional da cidade.

IV

A legislação urbanística quando exige o oferecimento de estacionamento não o faz por meras questões estéticas ou por capricho. Há razões urbanísticas evidentes para isso. Em especial, preocupa-se o legislador com o impacto viário que a instalação de determinada atividade produzirá na vida dos habitantes da cidade.

Quando há a cobrança pelo estacionamento, os motoristas não necessariamente, ao procurarem uma atividade econômica, utilizam o estacionamento que a lei determinou que fosse oferecido na edificação. Antes, haverá uma avaliação de custo/benefício, podendo a decisão ser contrária à política urbanística, ou seja, diante do desejo de se furtar ao pagamento, o motorista buscará estacionar em área pública, causando o impacto que a legislação urbanística quis evitar ao tornar obrigatório o oferecimento do estacionamento.

Deve-se diferenciar o estacionamento oferecido por determinação legal do estacionamento como atividade econômica.

Ninguém questiona o fato de que os estacionamentos podem ser construídos para que sejam explorados economicamente. Da mesma forma que posso construir um hotel e cobrar pela hospedagem, também posso construir um estacionamento garagem e cobrar pelo estacionamento. Nesses casos, estaremos claramente diante de uma atividade econômica, sujeita, como outras, a exigências legais.

Outra coisa totalmente distinta são as vagas de estacionamento que, nas edificações urbanas, são previstas em lei. As atividades urbanas que atraem certo público provocam impactos viários que são, em certa medida, compensados, com o oferecimento de vagas de estacionamento.

Estranha a permissão para que seja cobrado o uso de facilidades em construções que a lei determinou que fossem oferecidas, com clara finalidade de redução de impacto do empreendimento. A rigor, não se pode falar que há o oferecimento do estacionamento, haja vista que o cliente tenderá, em muitos casos, a estacionar fora do espaço que a lei mandou reservar para automóveis.

A permanecer vigente o entendimento de que se trata de direito civil – seja considerando que se trata de relação contratual entre empresa e cliente, seja considerando que se acha de conteúdo material da propriedade, no futuro poderemos ter, naquelas vagas recuadas em frente a edificações destinadas ao comércio, correntes estendidas e funcionários cobrando do cliente pelo tempo que o seu veículo permeneceu estacionado.

2 comentários:

Luis disse...

Fala Gustavo,

Muito boa sua argumentação. De fato, entendo que o município pode regular essa questao. Só nao vejo beneficio nenhum nessa gratuidade. O custo do estacionamento (tributos, manutencao, seguro, etc) vai ser repassado para alguem, leia-se, o lojista. E esse, por sua vez, vai repassar para o consumidor. Ou seja, quem vai a pé ou de onibus pro shopping vai pagar o estacionamento dos que vao de carro. Fora que é um baita estímulo ao transporte individual. Enquanto outros municipios discutem restricoes aos motoristas, a gente anda pra tras nessa materia.
Abracao,

Luis disse...

Olá Gustavo,
Muito boa sua argumentacao. Concordo que o municipio tem competência para legislar sobre esse tema, por ser materia urbanistica.
So que nao vejo nenhum beneficio nisso, pelo contrario. Se os estabelecimentos tem custos com o estacionamento (tributos, manutencao, seguro, etc), entao ele vai transferir esse custo para alguem. No caso dos shoppings, para os logistas, que vao aumentar seus preços. Ou seja, quem vai a pe ou de onibus pro shopping vai pagar o estacionamento de quem vai de carro. E vai faltar vaga para os demais interessados, pois agora nao ha estimulo para fazer as compras rapidamente. Fora que constitui grande estimulo ao transporte individual, o que mostra que Recife esta na contramão do que outras cidades estao fazendo.
Abracao,