domingo, fevereiro 21, 2010

Constituição e Constitucionalismo

Capa do livro: Constituição e Constitucionalismo, Gustavo Ferreira Santos


Foi publicado o livro Constituição e Constitucionalismo, que organizei, pela Editora Juruá. Segue a minha apresentação constante na obra:





Na atualidade, a Constituição assume um papel de destaque na vida social. Para além das pretensões de um primeiro constitucionalismo, de matiz liberal e que buscava construir anteparos contra os possíveis excessos de um Estado mínimo, o constitucionalismo contemporâneo produziu uma Constituição material extensa e aberta à ampliação pela atuação de uma Jurisdição Constitucional plena de poderes. O foco dos estudos constitucionais migrou, no século XX, das normas sobre organização do Estado para considerações sobre a interpretação e a aplicação do catálogo de direitos fundamentais, cada vez mais complexo.

As primeiras constituições, no sentido moderno, eram instrumentos de proteção do espaço de livre desenvolvimento do indivíduo. A garantia de tal espaço se dava com declarações de liberdades e garantia da propriedade, bem como por normas de organização que delimitavam o âmbito de atuação de autoridades públicas. Inspiravam-se em ideais políticos liberais e fundavam os direitos ali declarados em um jusnaturalismo racionalista. O uso do termo declaração, para o conjunto de direitos consagrados, já indicava a crença em posições jurídicas anteriores ao Estado, que, pelas declarações, apenas as reconhecia. Do Estado pouca providência era esperada, sendo sua função, especificamente, a garantia da segurança e a administração da justiça. Assim, uma distinção entre Estado e sociedade deixava claro que a ameaça era o Estado.

A aplicação da Constituição liberal dá-se pelo funcionamento das instituições nela reconhecidas. O Parlamento é o ator principal. A lei é a principal forma de intervenção do Estado. Através da reserva de lei garante-se a participação dos interessados nas decisões que limites os direitos naturais[1]. As diversas experiências de constitucionalismo que países com tradições políticas distintas tiveram reservam um papel um pouco diferente para a lei. Entre o Estado de direito europeu continental e o rule of law inglês, a principal diferença reside no fato de que a lei, para o primeiro, é um elemento de um “direito universal e atemporal”, quando, no segundo, é mais um instrumento na construção de uma justiça inacabada[2].

A revolução que o constitucionalismo social veicula transforma materialmente as constituições. O indivíduo comerciante não é mais o centro da vida política, já que problemas sociais graves exigem a intervenção de um Estado que não pode mais ficar inerte. O Estado passa a ser um prestador de serviços e se reconhece devedor da sociedade. Há um crescimento inevitável do Estado, que se esforça para responder a demandas. A atuação das instituições, como o Parlamento, passa não mais a ser mero instrumento de aplicação da Constituição, constituindo, muitas vezes, obstáculo à efetiva realização de direitos.

Os debates na Alemanha no período de Weimar giram em torno da conciliação entre constitucionalismo e democracia. Não mais quer a Constituição, a partir de Weimar, definir os poderes e enviar à lei a garantia de direitos, mas quer fundar a convivência social em princípios fundamentais e buscar, para a sua tutela, instrumentos institucionais. Nesse sentido, o princípioda inviolabilidade dos direitos fundamentais, que viabiliza o controle da constitucionalidade das leis, e o princípio da igualdade visto sob o aspecto material, que pões em questão o acesso a bens fundamentais da vida civil, são problemas relevantes para esse novo constitucionalismo[3].

Há, ainda, uma evolução nas constituições, destacando ainda mais os direitos fundamentais e, por via de conseqüência, o papel dos intérpretes da Constituição, com a incorporação de direitos titularizados pela própria humanidade e não mais por indivíduos ou grupos.

O pluralismo que marca a nossa sociedade exige regras de convivência e canais de manifestação dos diversos interesses que só parecem possíveis sob a mediação de uma Constituição, que condiciona a política cotidiana. Não mais uma Constituição que apenas se coloca como um anteparo contra o excesso de poder pelo Estado, mas que se faz instrumento para uma atuação estatal eficaz na intervenção promotora de padrões de dignidade.

É dessa Constituição que este livro coletivo fala: a Constituição dos Direitos Fundamentais. Com Zagrebelsky podemos dizer que vivemos sob uma forma estatal que é mais do que um Estado de Direito e que pode ser chamada de Estado Constitucional. Nessa forma de apresentação do Estado, que se funda na soberania do povo e na idéia de dignidade humana[4], destaca-se a função exercida pela Constituição, catalizadora das diversas forças em convívio Nela estão entrincheirados diversos interesses. No mais das vezes, as normas que veiculam tais interesses apresentam-se excessivamente abstratas e, portanto, apertas a uma especificação pela Jurisdição Constitucional.

Os trabalhos que compõem este livro têm distintas orientações, refletindo diversas posturas possíveis frente a essa Constituição. Abordam o problema pela caracterização das especificidades da Constituição que o Estado constitucional veicula;

Esta obra surge da atividade do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais, formado por professores de diversas áreas do Direito na Universidade Católica de Pernambuco. O rico intercâmbio de idéias entre os componentes do grupo levou à identificação de um fio condutor para uma reflexão ampla sobre o Estado constitucional, incorporando textos de pesquisadores da instituição e de pesquisadores de outras instituições, do Brasil e do Exterior. Apesar de não ser um intento da obra dar um panorama geral das teorias da Constituição e dos direitos fundamentais, os principais problemas dessas áreas específicas dos estudos jurídicos estão aqui tratados, de forma aprofundada, sendo uma fonte importante para estudos futuros.

O professor espanhol José Asensi Sabater, catedrático de Direito Constitutional da Universidade de Alicante, apresenta uma ampla análise histórica do constitucionalismo. Trata das constituições inseridas nesta tradição e da teoria que quer dar conta do papel da constituição. A crise do Estado constitucional e os desafios que a sua expansão a outros quadrantes do mundo impõe à teoria, especialmente quando estendido a países com formação cultural bem diferentes dos que originaram a tradição constitucionalista, são analisados no texto, indispensável para o entendimento do fenômeno constitucional.

João Paulo Allain Teixeira, professor de Direito Internacional Público, mas de sólida formação constitucional, analisa a dicotomia entre posições liberais e republicanas, que marca o debate da Teoria do Estado. Seu trabalho enfatiza as conseqüências políticas do pluralismo da sociedade contemporânea. Clama por uma Constituição garantidora de uma abertura procedimental que permita a participação dos diversos grupos no jogo democrático.

Em seu texto, Gilberto Bercovici, da Universidade de São Paulo, lança luzes sobre o papel político da Constituição. Chama a atenção para o enlace entre democracia e direitos sociais, à medida que demonstra a necessidade, para que os indivíduos e grupos se reconheçam na Constituição, de uma certa homogeneidade social, que não será garantida pela mera ação do mercado, mas que necessita da atuação de um Estado com uma clara opção social. Em sociedades subdesenvolvidas fica ainda mais evidente essa necessidade de uma intervenção no sentido da igualação das condições sociais.

Raul Gustavo Ferreyra, da Universidad de Buenos Aires, parte da realidade constitucional argentina, demonstrando a sua evolução, para fazer uma profunda análise da democracia constitucional como modelo. Enfrenta alguns dos temas mais importantes da Teoria da Constituição, como o conceito de poder constituinte, o papel da interpretação constitucional e a relação entre permanência e mudança da obra constitucional.

Ricardo Silveira Ribeiro, pesquisador preocupado com e eficácia dos direitos sociais, estabelece, com o trabalho aqui apresentado, um debate crítico com a teoria da “constitucionalização simbólica” de Marcelo Neves, que o autor reputa uma das contribuições mais originais no debate constitucional brasileiro. Delimita o autor alguns problemas da teoria analisada e propõe uma alternativa de explicação para o problema da eficácia da Constituição no Brasil, que conhece um desenvolvimento social desigual, com um forte patrimonialismo em sua cultura.

O nosso texto sobre o chamado neoconstitucionalismo questiona algumas das bases da atual versão forte de constitucionalismo. Ali, apontamos problemas que uma concepção abrangente de constituição pode apresentar ao pensamento democrático. Afirmamos a necessidade de, na interpretação constitucional, reencontrarmos um espaço de destaque para o princípio democrático.

Esperamos que dos textos levem à crítica e à reflexão sobre os problemas apresentados. A intenção de todos os autores foi muito mais provocar a discussão do que propor um ponto final. Que venham os frutos.

Recife, dezembro de 2008.

Gustavo Ferreira Santos

[1] Miguel ARTOLA, Constitucionalismo en la historia, p. 73.
[2] Gustavo ZAGREBELSKY, El derecho dúctil, p. 26.
[3] Constitucion, de la antigüedad a nuestros días, p. 150.
[4] Peter HÄBERLE, El estado constitucional, p. 172.