terça-feira, agosto 25, 2009

Lina, "a técnica"

Engraçado que a imprensa acusava Lina Vieira de ser instrumento de uma partidarização da Receita Federal. A cada nomeação de superintendentes e diretores, havia acusação de aparelhamento. Agora, os mesmos analistas dizem que ela era uma "técnica" e que os "técnicos" por ela indicados estão sendo retirados para...aparelhamento da Receita. Eu estou louco ou é isso mesmo?

Vejam a evolução do Estadão:

Em 30 de outubro de 2008 (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081030/not_imp269322,0.php):

Ao vencedor, o desmanche
As piores previsões feitas quando da nomeação de Lina Maria Vieira para o comando da Receita Federal se concretizaram: o aparelhamento do aparato de fiscalização e arrecadação, uma das áreas ainda razoavelmente imunes ao loteamento partidário/sindical patrocinado pelo governo Luiz Inácio da Silva em setores-chave da administração federal.Trata-se de um plano bem planejado e gradativamente executado. Portanto, enquanto estiverem no manche do poder governantes com esse tipo de visão (utilitária) do Estado, nada há a fazer. Não adianta reclamar, denunciar, apontar os malefícios, os retrocessos, a ótica distorcida, o espaço aberto a ilicitudes e as intenções subjacentes, porque para tudo há uma justificativa quando a decisão de governo está tomada.Na Receita foram substituídos cinco dos seis secretários-adjuntos, os superintendentes de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e mais os responsáveis pelas regiões Norte e Nordeste, nos últimos três meses.Uma remodelação dessa amplitude em tão curto espaço de tempo, se fundamentada em motivações exclusivamente profissionais, teria necessariamente de ser acompanhada dos devidos esclarecimentos.Se algo andava mal na Receita, o contribuinte tinha o direito de saber. Se a partir da nova política de remanejamento de pessoal começaria a andar melhor, o governo seria o maior interessado na divulgação e poderia merecer aplausos.No lugar disso, o que se viu muito bem relatado na reportagem da edição de ontem do Estado foram trocas paulatinas na estrutura central e nas superintendências regionais feitas com o oficioso objetivo de substituir a "turma do Everardo" para pôr fim à influência do secretário na gestão Fernando Henrique Cardoso, Everardo Maciel.Mas, se o critério é nebuloso, a intenção é claramente exposta: dar lugar à "turma do Unafisco", o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais, de onde saíram os novos superintendentes. Concursados todos eles, aponta a reportagem. Só que não é a condição legal ou a capacidade técnica o que se discute, mas o comprometimento dos sindicalistas com uma causa política e o retrocesso - para não dizer o risco - que isso representa no tocante ao uso partidário da máquina do Estado.Numa área como a Receita esse tipo de controle pode ser uma arma de potência incomensurável sobre adversários, principalmente em períodos eleitorais. Se o governo ganhar a próxima eleição presidencial, os poucos avanços obtidos na despolitização da burocracia no governo anterior continuarão sendo anulados - exatamente como fez a aliança PMDB/PFL na Nova República em relação à estrutura herdada do regime militar - até o limite do imprevisível.Mas, se o vencedor for da oposição e tiver da administração pública uma visão profissional, vai se deparar com o desafio de desmontar o aparelho sindical antes mesmo de manifestar o tradicional repúdio ao loteamento partidário que preside as relações entre Legislativo e Executivo e impede o Brasil de ser governado por um projeto de País, mantendo-o atrelado a planos alternados de poder. Há quem trema só de pensar no enfrentamento do próximo governo com o PT se o partido porventura voltar derrotado da batalha de 2010 diretamente para a trincheira da oposição.Mas há quem lembre também que pior que o embate na base do grito e da cobrança será a resistência da aliança entre ideológicos e fisiológicos que, na defesa de seus interesses, vai se movimentar ainda na fase de escolha de candidaturas dentro dos partidos. De todos eles, os oposicionistas e os governistas por adesão ou por convicção.Lugar ao solSempre que algo ou alguém fortalece demais a posição do governador de São Paulo, José Serra, como candidato do PSDB à Presidência da República, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, cria um fato para lembrar que continua no jogo.Foi assim no início do ano, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que a melhor solução para os tucanos seria a reeleição de Gilberto Kassab na Prefeitura de São Paulo, Geraldo Alckmin candidato ao governo do Estado em 2010 e Serra na disputa pela Presidência.Aécio de imediato deu início a um périplo de conversas multipartidárias, lançou a tese da convergência possível entre PT e PSDB e deixou prosperar a impressão de que poderia mudar de partido para ser uma espécie de candidato da "unidade", quem sabe até com o apoio do presidente Lula.Agora acontece de novo. Quando Serra é saudado como o grande vencedor de 2008 e, por isso, apontado como a opção "natural" da oposição para 2010, Aécio prega a definição de candidaturas presidenciais mediante prévias.Não quer briga nem se apresentar à disputa interna desde já. Só põe um tema na agenda de maneira a defender a parte que lhe cabe no latifúndio da cena política nacional.

Receita perigosa
A primeira mulher na chefia da Receita Federal, Lina Maria Vieira, deixa o cargo duas semanas antes de completar um ano de gestão. Nomeação e demissão têm um importante ponto comum: uma e outra foram determinadas, em grande parte, por motivos muito mais políticos ? no sentido menos nobre dessa palavra ? do que técnicos. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, ofereceu-lhe o posto para se livrar de um importante remanescente da equipe de seu antecessor, Antonio Palocci. Isso nunca foi dito oficialmente, mas a explicação nunca foi um segredo. Também a demissão foi decidida sem a apresentação, pelo menos até ontem, de uma clara justificativa oficial. Segundo o noticiário, o desgaste político da secretária é atribuído, por fontes do governo, a vários fatores, mas o mais importante, se não o único realmente importante, foi a ação da Receita Federal contra a Petrobrás por causa de operações de "compensação de tributos" no valor de cerca de R$ 4 bilhões. Mantega protestou por não ter sido consultado e alegou sua condição de membro do conselho da estatal, como se isso tornasse obrigatório consultá-lo antes de qualquer medida fiscal contra a empresa. Lina Maria Vieira é funcionária da Receita desde 1976 e foi secretária da Fazenda do Rio Grande do Norte por duas vezes. Foi indicada ao ministro Mantega pelo secretário executivo do Ministério, Nelson Machado. O ministro procurava um substituto para Jorge Rachid, chefe da Receita nomeado pelo ministro Antonio Palocci. Rachid teve um bom desempenho no cargo, mas, segundo se comenta no Ministério da Fazenda, era considerado muito independente por Mantega e ainda tem prestígio entre os funcionários do Fisco.Se esperava uma secretária mais discreta e mais obediente às suas orientações, Mantega certamente se decepcionou. Lina Maria Vieira anunciou e pôs em marcha uma fiscalização mais severa das instituições financeiras. Não desagradou só aos banqueiros. Empresários de outros setores se queixavam de ter pouco acesso à Receita para discutir as questões de seu interesse. Tudo isso pode ser verdade, mas nenhum desses fatores é uma boa justificativa para se mudar a chefia do Fisco federal. Também se atribui à secretária a nomeação de sindicalistas para postos importantes em vários Estados. Mas, no governo do PT, o aparelhamento da máquina estatal com sindicalistas politicamente alinhados não é, nunca foi e provavelmente nunca será pecado. É difícil achar uma área da administração federal, direta ou indireta, ainda livre dessa praga. Também segundo o noticiário, há descontentamento no governo com a perda de arrecadação. Mas essa perda é atribuível essencialmente à recessão e aos incentivos fiscais a alguns setores considerados especialmente importantes pelo governo, como o automobilístico, o imobiliário e o de eletrodomésticos. É grotesco responsabilizar a secretária da Receita pela perda de arrecadação. Essa justificativa é uma ofensa à opinião pública.Restam, portanto, poucas explicações críveis para a demissão de Lina Maria Vieira. A nova secretária não se mostrou dócil e disposta a viver à sombra do ministro. Com personalidade própria, criou atritos dentro e fora do governo. Um desses atritos foi com certeza decisivo. Ao contestar o critério contábil da Petrobrás, a Receita colidiu com a maior estatal brasileira, responsável pela maior parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e um dos itens favoritos da retórica político-eleitoral do presidente Lula. O conflito surgiu porque a empresa mudou a escrituração, trocando o regime de competência pelo de caixa. Com isso, poderia expurgar parte de seus ganhos do lucro tributável e ganhar cerca de R$ 4 bilhões. A Receita contestou a mudança. A empresa, segundo o Fisco, deveria ter mantido o sistema adotado no começo do período fiscal. Esta é uma discussão para especialistas, mas o ministro da Fazenda condenou publicamente, e sem demora, a ação da Receita. Consequência inevitável: se a Petrobrás pode, por que não qualquer outra empresa? O ministro parece nem ter percebido esse pormenor. Com a demissão da secretária, a CPI da Petrobrás, com instalação prevista para hoje, tem mais um motivo para incluir aquele episódio em sua pauta. É um bom assunto para discutir com o ministro da Fazenda.

sexta-feira, agosto 21, 2009

A bandeira de Barbara Gancia


Barbara Gancia está ditirâmbica. Cheia de entusiasmo por Marina Silva. Pelo que Marina Silva tem de melhor, sua origem humilde.
Para Barbara “Com sua cara de brasileirinha barrada no baile, do ponto de vista pedagógico Marina Silva representa a bandeira que o mundo quer ver o Brasil hastear. Alfabetizada no Mobral, contaminada por metais pesados, vítima das doenças da floresta, alguém que percorreu uma estrada muito similar à de Lula, só que sem a mácula do sindicalismo, o que ela pensa sobre sustentabilidade e o ambiente faz todo o sentido em um país que possui 60% do que resta de hectares “plantáveis” no mundo.” (FSP 21 agosto 2009)
Marina é a bandeira de Barbara, porque seria “alguem que percorreu uma estrada muito similar à do Lula”.
Pareceria que Barbara também apreciava o Lula e “a sua estrada”, sem formação superior e de origem pobre.
Será?
Em 1998, Barbara Gancia escrevia na Folha de São Paulo:
“Tire as crianças da sala, que eu vou contar uma piada suja. Diz que no meio de uma conversa entre o Lula e o Vicentinho, alguém soltou um pum. Qual o nome do filme? Você não sabe? Ora, “O que É Isso, Companheiro?”. (FSP 25 de março 1998).
Em dezembro do mesmo ano, na mesma Folha, Barbara ponderava:
“SibilanteE o Luiz Inácio Lula da Silva, hein, que vai passar seis meses estudando em Harvard? Só espero que, antes de embarcar para os Estados Unidos, ele aprenda a dizer Cambridge, Massachusetts, sem cuspir em meio mundo.” (FSP 11/12/1998).
Ver também, de junho 2001 o artigo premonitório da mesma Barbara Gancia Lula nunca chegará à Presidência
Mas como Marina rompeu com Lula e sua origem pode servir eleitoralmente para os que sempre cuspiram na origem do Lula, Barbara Gancia procura levantar a bandeira.
Dos hipócritas!
Luis Favre

Interessante posicionamento sobre a universalidade dos direitos humanos publicada no Le Monde Diplomatique, de autoria de Francois Jullien

"Os direitos do homem são mesmo universais?
Levado ao resto do mundo pelas asas do imperialismo, este conceito ocidental não foi aceito por todos os povos. Seu efeito isolador é incompreendido nas culturas que privilegiam a integração com o mundo e buscam a não alienação do homem, justamente um dos objetivos inatingidos dos tais direitos impostos
Autor: François Jullien

Os direitos do homem são um dever universal. Ao menos é isso que o Ocidente tenta impor para todos os povos do mundo, independente de sua cultura. Exige que eles subscrevam seus preceitos, sem exceção ou brechas, e esquece que esse mesmo padrão foi forçado goela abaixo dos próprios europeus.

A fabricação do “universal” foi excêntrica, para não dizer caótica. Nasceu a partir de projetos múltiplos, e até mesmo inconciliáveis, que culminaram na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Objeto de intermináveis negociações e compromissos, o texto final é uma associação de fragmentos colhidos de diversos lados. Um termo aqui, uma frase acolá, artigos corrigidos, desmembrados e reescritos inúmeras vezes [1]. Pronta, a Declaração foi reconhecida e aprovada por seus próprios autores como uma obra “não terminada”. “Certamente o pior projeto é o que foi adotado” [2], declarou um deles.

Com receio de aumentar as desavenças, todos os pontos de disputa foram ignorados. Redigido às pressas, o texto é revestido de uma abstração que o torna sagrado. Ele ostenta ainda uma aura mítica, ao reivindicar sua concepção “em presença e sob os auspícios do Ser supremo”, apesar de ter sido retirado inteiramente do cérebro dos constituintes. Arroga uma universalidade inicial, ao mesmo tempo em que mistura má-fé e entusiasmo. Se desconsiderarmos seu árduo processo de produção, impressiona pelo êxito histórico: foi legitimamente alçado ao estatuto de ideal e necessário, a ponto de influenciar as constituições francesas de 1793, 1795, 1848 e 1946 e a Declaração Universal adotada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948.

Mas o fato de ter sido constantemente reescrito já mostra que sua suposta universalidade não está dada. Além disso, ao se imporem somente na época moderna, os direitos do homem tornaram-se produtos de uma dupla abstração ocidental: dos “direitos” e do “homem”. Dos “direitos” porque essa noção isola o sujeito, privilegiando o ângulo defensivo da reivindicação, que visa à emancipação e à não-alienação, consagradas como fonte da liberdade. Do “homem” porque o isola de todo contexto vital, do animal ao cósmico, e coloca as dimensões social e política como dependentes de uma construção posterior que garanta sua existência.

É justamente nessa abstração que está a contradição da universalização dos direitos do homem: o isolamento, preço pago para erigir o “universal”, desfez a incorporação do humano em seu mundo e o distanciou da tão almejada não-alienação. Há uma clara oposição entre integração – seja pelo meio familiar, corporativo, ético ou cósmico – e emancipação. A família, por exemplo, que é o nível primário de inclusão, responsável pela mediação inicial entre indivíduo e sociedade, está ausente das declarações de 1789 e 1793. Só aparece em 1795 e de um modo surpreendente, lembrando as cinco relações confucianas: “ninguém é bom cidadão se não é bom filho, bom pai, bom irmão, bom amigo, bom esposo”. Na Declaração Universal de 1948, a referência a “todos os membros da família humana” continua tendo um estatuto vagamente metafórico e alusivo, mais retórico que explicativo. Até hoje, integração e emancipação foram inconciliáveis. Resta ao mundo decidir se isso continuará assim.

Para compreender melhor, tentarei explicar por que o conceito de direitos do homem não encontra eco no pensamento oriental clássico. Na Índia, por exemplo, não há isolamento do “homem” em relação ao mundo, pois a aderência é tão grande que não se concebe uma ordem natural da qual o ser humano não faça parte. A integração é estabelecida até a partir dos animais, que para os indianos são dotados do poder de compreensão e de conhecimento e podem já ter sido homens antes de renascerem como bichos.

A filosofia européia é naturalmente abalada por isso. Na Índia, o homem é tão pouco excepcional que sua vida e morte são vazias de qualquer significado, destinadas a se repetirem indefinidamente. Assim, não encontramos lá nenhum princípio de autonomia individual nem de auto-constituição política a partir das quais os direitos do homem devam ser declarados. Enquanto para o pensamento europeu a liberdade é a última palavra, para o Extremo-Oriente é a harmonia. E sob esse aspecto, a Índia se comunica efetivamente com a China através do budismo. Lá, é o Ocidente que produz uma escandalosa exceção ao introduzir a ruptura que isola o homem.

Portanto, a despeito de sua pretensão universal, os direitos do homem não estão por toda a parte. Quando a perspectiva dominante é outra, os significados mudam. Sob a hegemonia da transcendência, que culmina na constituição de um outro mundo, os direitos são absorvidos em uma ordem cósmica ou teológica. Este é o caso do Islã. A Revelação e o Corão fixam uma lei que, por sua criação divina, atinge “o ponto final na regulamentação das relações humanas” [3]. O medo do Juízo Final, elemento primeiro da fé islâmica, reduz os direitos humanos à insignificância.

Por outro lado, quando há uma cultura em que a imanência prevalece, os direitos não são capazes de se destacar do curso espontâneo das coisas e não emergem das relações de força. Este é exemplo da China. A expressão “direitos do homem” é traduzida para o chinês como Ren-quan. Ren é homem. Quan quer dizer “poder”, especialmente político (quan-li), ou “circunstância”, “expediente” (quan-bian, quan-mu), em contraposição à rigidez das regras (jing). Dessa forma, quan significa um não-bloqueio, uma evolução de acordo com a lógica do processo em curso. O fato de essas duas palavras se juntarem num mesmo termo para traduzir “direitos do homem” revela que seu sentido foi adaptado à visão de mundo chinesa, ao invés de ter sido utilizado com os parâmetros que o Ocidente pretendia impor.

Claro que hoje esse “enxerto” estrangeiro está bem estabelecido na China moderna. Afinal, quando reivindicam os direitos do homem, os jovens chineses da Praça da Paz Celestial sabem que tipo de mensagem estão transmitindo para o Ocidente. Mas por que eles foram praticamente forçados a aprender esse significado e os ocidentais, por outro lado, não compreendem a visão dos orientais? Será que a reivindicação de uma universalidade dos direitos do homem vem do fato que o modo de vida do Ocidente, oriundo da ciência e do capitalismo, acabou se impondo no resto do mundo, e que agora é necessário – ou fatal – adotar a ideologia das relações humanas que vêm junto com essas transformações? E essa sua legitimidade, é decorrência do pensamento europeu ser uma expressão efetiva do progresso histórico e os direitos humanos, como seu produto, constituírem um ganho para a humanidade? O ponto de partida desses questionamentos já é uma acusação, ao menos tácita, de todas as outras culturas. Insustentável, esta visão é criticável por seu etnocentrismo mais obtuso. Afinal, o progresso do pensamento europeu só é julgado positivamente dentro do próprio quadro ideológico que o criou, o ocidental.

Essas objeções são suficientes para mostrar que qualquer justificativa de uma universalidade dos direitos do homem não funciona. Em vez de amoldar o conceito, fazendo acomodações que tornem esses direitos transculturalmente aceitáveis, deveríamos tomar o partido inverso e confiar no seu efeito de conceito, que permite sua operacionalidade e radicalidade. Pois é somente a partir de sua abstração, de sua separação da cultura e do meio de origem que será possível comunicá-los a outros povos. Não é apenas porque o Ocidente promoveu os direitos do homem no momento em que chegava ao auge do poder que eles são hoje debatidos entre as nações, mas sim porque esse estatuto de abstração os torna intelectualmente manejáveis, comodamente identificáveis e transferíveis, fazendo deles um instrumento privilegiado para o diálogo. Não se poderia, por exemplo, ter a “harmonia” como um objeto de comparação, internacionalmente discutível entre as culturas [4].

Por outro lado, sua radicalidade conceitual está em apropriar-se do humano no estágio mais elementar: enquanto nascido. Mas isto teria sido concebido apenas a propósito dos direitos do homem e dentro do quadro europeu? Acredito que não. Pensemos em um famoso ensinamento chinês: imagine alguém que, vendo de repente uma criança a ponto de cair num poço, é imediatamente tomado de pavor e faz um gesto para retê-la. Esse movimento lhe escapa, é completamente reativo. Não poderia deixar de fazê-lo, independente de ter relação privilegiada com os pais da criança, ver nisso um mérito, ou temer ser censurado se não o fizesse. Ora, segundo o filósofo chinês Mêncio, [5] “quem não tem tal consciência da piedade não é homem”. Ou seja, quem nessa situação não estendesse os braços “não é homem”. Em vez de partir de uma definição ideologicamente determinada e, por isso, particular, Mêncio faz surgir aquilo que em si tem vocação de universalidade por ser uma reação não controlada de “humanidade”. Esse braço que se estende é, evidentemente, sem que haja necessidade de interpretação nem mediação cultural, algo “intrínseco” ao sentido comum do humano. Em outras palavras, levar em conta a disparidade das culturas e a maneira como ela nos obriga a desencavar o impensado de nosso pensamento não significa renunciarmos à exigência do comum.

A capacidade universalizante dos “direitos do homem” deve-se, ainda mais, a seu alcance negativo, do ponto de vista daquilo contra o que eles se erguem. Este é infinitamente mais amplo que sua extensão positiva, ou seja, ao que eles aderem. Afinal, sabemos agora que em seu conteúdo positivo, esses direitos são contestáveis – por seu mito do indivíduo, por sua construção da “felicidade” como fim último, por seu pressuposto de ensinar universalmente o significado da vida, exigindo que sua ética seja preferida a qualquer outra. Mas, em contrapartida, eles são um instrumento incomparável para dizer não e protestar, para opor-se ao inaceitável, marcar uma resistência. Os direitos do homem, indefinidamente mutáveis e transculturalmente sem limites, nomeiam precisamente aquilo “em nome de quê”. Ora, essa função negativa, insurrecional, prevalece sobre a dimensão positiva da noção e alcança a utilidade mais geral que a vocação do universal possui: a de reabrir uma brecha na totalidade satisfeita, reacendendo nela a aspiração. Nem todos os que invocam os direitos do homem aderem à ideologia ocidental – às vezes nem mesmo a conhecem –, mas encontram neles o último argumento, o instrumento incansavelmente retomado de mão em mão e disponível para toda causa por vir.

Isso requer “deslocar” um pouco nossos termos usuais: melhor do que reivindicar uma universalidade arrogante dos direitos do homem – que nos condenaria a desconhecer o quanto eles são culturalmente marcados – e melhor do que renunciar, por despeito teórico, à arma insurrecional e de protesto que eles constituem e podem servir em todos os lugares de nosso planeta, mais vale abrir um desvio em nossas palavras e, vendo-os como universalizante, exprimir ao mesmo tempo duas coisas: primeiro, em vez de supor nos direitos do homem uma universalidade que eles teriam desde o início, o universalizante dá a entender que o universal se encontra em curso, em marcha, em processo que não está acabado; segundo, em vez de deixar-se conceber como uma propriedade ou qualidade passivamente possuída, o universalizante dá a entender que é fator, agente e promotor. É, nele mesmo, vetor do universal, e não por referência ou sob a dependência de alguma representação instituída externamente.

O caráter universalizante dos direitos do homem, portanto, não é da ordem do saber (teórico), mas do operatório (ou prático): eles são invocados para agir, desde o princípio, em qualquer situação dada. Por outro lado, sua extensão não é a da verdade, mas do recurso. O que distingue o “universalizante” do “universalizável” é precisamente essa diferença de plano. O universalizável é o que pretende a qualidade de universal, enquanto enunciado de verdade. Assim ele depara inevitavelmente com o espinhoso problema de seu “poder ser”. Devendo justificar em nome de quê é legítima a extensão que ele se arroga, o “universalizável” corre sempre o perigo de ser tachado de uma pretensão abusiva, sob o risco de ser considerado fraudulento ou, pelo menos, litigioso. O “universalizante”, por sua vez, é imune a esse problema de legitimidade: sendo de onde emana o universal, por carência e de forma operatória, ele não se pretende nada, ele faz. Seu valor é medido pela força e a intensidade desse efeito.

Podemos dizer que os direitos do homem são um “universalizante” forte e eficaz. A questão não é mais saber se eles são universalizáveis, isto é, se podem ser estendidos como enunciado de verdade a todas as culturas do mundo – e, nesse caso, a resposta é não. Mas é ter certeza que eles produzem um efeito de universal que serve de arma incondicional, instrumento negativo em nome do qual um combate a priori é justo e uma resistência é legítima. "

quinta-feira, agosto 06, 2009

E a vida se renova...

Nem tudo está perdido.
Precisamos muito de motivos para pensar assim.
Já faz tempo que a humanidade erra e não aprende. Todos os dias, o noticiário é preenchido por notícias ruins. Em sua maioria, falam de desastres causados pelo homem: guerras, fome, desamparo.
Não precisamos muito da fúria da natureza. Terremotos, vulcões, furacões, dentre outros fenômenos, destroem, mas o homem consegue fazer pior.
Porém, a perda da esperança é, também, um desastre.
Desde segunda-feira me bateu um otimismo repentino.
Comecei a ver, de novo, que não estamos no fim, que muita água ainda vai rolar e que tudo pode ser refeito, e melhor.
Nasceu o meu filho. A expectativa era grande. Eu queria muito ver a carinha dele, ouvir sua voz, tocar sua pele, sentir o seu calor. De repente, posso tudo isso.
Ele chegou lindo e saudável, graças a Deus.
Vejo que ele tem tanto a aprender. Mas tenho certeza, também, que ele vai me ensinar muita coisa. Espero ser alguém melhor, ao lado dele.
Vi seu primeiro aprendizado. Ao ser colocado no peito da mãe, foi, aos poucos, movimentando a boca, fazendo o que é necessário. Hoje, quando ele faz três dias, além de saber mamar com uma apurada técnica, já exercita bem o direito de exigir o peito, com gritos e choros eficientes.
O ato de mamar é o significado mais concreto da palavra carinho.
Como professor, sempre me encantei com o aprendizado. Sempre vibrei quando via alguém manuseando conceitos e técnicas que, há pouco tempo, não eram do seu conhecimento. Essa experiência que vivi superou todas as minhas impressões anteriores.
Viva o ser humano. Tudo é possível, quando ele está aberto a aprender. Viva a humanidade, que se renova diariamente, com essas coisinhas lindas, que nascem sem os defeitos dos que perderam a oportunidade de se fazer humanos.